Por Soraya Belusi
Sob um forte breu, apenas um vulto. A imobilidade de seu corpo sem face, revelado lentamente pela luz que lhe confere forma, carrega a força de um tempo mitológico, sem possibilidade de fixação no espaço. A face, quando revelada, assume um caráter mortuário, com sua veste negra e ainda manchada pelo pó. Como uma voz bíblica, anuncia a morte como o início da criação, a gênesis de um futuro: a imagem do fim e do início dos tempos.
Foto Elenize Dezgeniski |
Articulando-se como um poema cênico, “Coração de 29 polegadas”, com texto e direção de Léo Moita, instala em sua primeira imagem a abertura temporal que parece ambiciar no cruzamento entre o último momento de vida e o primeiro da eternidade. Essa força, porém, vai se esvaecendo nos momentos subsequentes, com a palavra perdendo o seu poder de materialização no espaço, na instauração de presenças, barrando o desafio de elaborar outros desenhos da condição humana que poderiam se realizar.
Através de uma construção que rompe a narrativa, desarticula o diálogo (ainda que se utilize dele) e abandona a localização espaço-temporal, o texto aponta para a alteridade, ainda que não a alcance plenamente em seu projeto artístico. Parece ainda dialogar com “Esperando Godot”, de forma indireta, tomando a espera como tema e problemática, e direta através de citações rearticuladas (“vamos embora?”, “não podemos, nós estamos aqui”…), e da presença do duplo complementar como síntese de toda uma humanidade.
As transições e deslocamentos (rítmicos, temporais, espaciais, de subjetivações), embora se manifestem nas pontadas que não se pode controlar, se fragilizam por não serem potencializados na mobilização dos recursos de luz (com exceção das imagens inicial e final), que agem ainda de maneira imperativa sobre o sentido, gerando atmosferas diferentes, mas ainda não mundos inaugurais. O elemento sonoro (o vento, os sinos, o chiado) aparece aqui como potencialmente simbólico em alguns momentos, carregando a iminência da destruição-nascimento, a potência do devir.