— por Soraya Belusi* —
“O ensaio é o lugar da frustração, do fracasso, do mau gosto, da ignorância e dos clichês. Mas é também o espaço do mergulho, do aprofundamento, do vislumbre de horizontes possíveis, da descoberta de ilhas incomunicáveis, de países sem continente, de territórios sem fronteiras e, por outro lado, territórios demarcados demais, conhecidos demais, explorados à exaustão. Terra de ninguém, terra de litígio, terra à vista, terra submersa. (ARAÚJO, 2011, p. 3)
Centro da cidade. 14 horas. Uma segunda-feira. A realidade pulsa do lado de fora. O fluxo dos corpos (físicos e máquinas) parece adentrar o interior. Cinco pessoas pelo espaço. Aquecimento, aula, brincadeira? Jogo, trocas, uma galinha pintadinha. Não pode deixar cair ou o destino de todos será o chão. Contorções de uma minhoca, apelidada de Minhoca Jackson. Invenção do Xande. “Tem que ter esse momento, hein?”, afirma alguém. Mas, por enquanto, tudo isso é só ensaio. Tudo é apenas possibilidade. E isso é muita coisa.
E nem mesmo o Espanca!, em plena ebulição de seu processo, sabe aonde de fato vai chegar. Um processo que, na verdade, engloba cinco. Para a realização de “REAL – Uma Revista Política”, o grupo enviou cinco fatos políticos que marcaram a sociedade brasileira nos últimos tempos como disparadores criativos para cinco dramaturgos de linguagens estéticas radicalmente diferentes. Cada um deles respondeu com um texto teatral curto, reunidos numa espécie de revista que pretende suscitar reflexões sobre o Brasil.
Um real que já nasce polifônico, múltiplo em suas vozes, que se constrói fragmentado por partes autônomas entre si e ao mesmo tempo conectadas a um todo maior, escrituras cênicas que buscam uma maneira de “realizar o real através do teatro”, como diz o texto assinado pelo próprio grupo no site do projeto.
A dimensão processual, embora intrínseca ao fazer teatral, encontra nas criações compartilhadas o ambiente ideal para sua evidenciação. E, neste tipo de procedimento contemporâneo, por sua própria natureza múltipla e inacabada, como enfatiza a teórica Josette Féral em alguns de seus artigos, os traços do percurso tendem a vazar para a obra, serem não só fundantes como perceptíveis ao espectador no resultado final[1].
Silvia Fernandes identifica essa dimensão processual na encenação e dramaturgia contemporâneas que, segundo ela, criam “zonas incertas de performatividade”, procedimento identificado na forma de cenas breves, episódicas, semelhantes a workshops improvisados, que “parecem indicar a precariedade do trabalho e o emprego informal à beira da dissolução” (FERNANDES, 2013, p. 416). Neste caso, tem-se a dimensão de que é impossível dissociar o processo de criação da obra que dele resulta, assim como eliminar da obra, supostamente acabada, os resíduos do processo que encontram eco em sua estrutura. Por esta visão, estas obras carregam em si mesmas uma espécie de mapa do percurso que percorreram até ali, um “dossiê genético”, podendo ser consideradas “o documento vivo de uma cena que registra seu próprio processo criativo”. (FERNANDES, 2013, p. 417).
O que se pretende com esse texto é, a partir da leitura dos registros de processo de criação compartilhados na web, aliada à observação em sala de ensaio[2], estabelecer conexões entre materiais levantados até este momento do percurso, procurando evidenciar caminhos e escolhas formais que vêm sendo adotados e cujos rastros se farão notar na obra final – considerando aqui o caráter processual do próprio espetáculo, este, também, in progress. O objetivo é, a partir das primeiras impressões colhidas no contato com a gestação da obra em sala de ensaio, buscar evidências nos próprios registros do coletivo de artistas de quando e como tais escolhas foram se agregando ao processo.
O PROJETO – PONTO DE PARTIDA
É praticamente impossível não se contaminar pela realidade que insiste em se apresentar do lado de fora. Localizada na rua Aarão Reis, no coração do centro de Belo Horizonte, a sede do Espanca!, assim como seus integrantes, foi testemunha e personagem de importantes fatos recentes que tomaram a capital mineira: desde as manifestações de 2013 até os encontros noturnos do Duelo de MC’s, passando pela noite agitada dos bares do entorno ou o simples vai e vem incessante dos ônibus que levam para muito longe. O Espanca! está mergulhado em realidade.
Não surpreende, nesse sentido, o interesse do grupo em dialogar com fatos verídicos de grande impacto na sociedade brasileira – seja pelo horror e violência contidos neles, seja pelo desinteresse com que foram tratados pelas autoridades.
O primeiro “exemplar” desta guinada do grupo foi a cena curta “Onde Está o Amarildo?”, que já buscava, como define o coletivo no texto sobre o projeto “REAL”, um diálogo com a realidade por meio de uma “poética da violência”. Tanto aqui como lá, não se trata de reproduzir o real, mas de realizá-lo, de construir uma linguagem de potência tal que seja capaz de restabelecer um vínculo entre quem faz e quem vê de maneira a desestabilizar a própria noção de real.
Assim, o grupo convidou cinco autores expoentes da dramaturgia contemporânea para, a partir de suas próprias poéticas, se apropriarem de fatos reais para construir uma realidade outra, esta teatral. Dessa forma, a greve dos garis no Rio de Janeiro, durante o Carnaval de 2014, ganhou a leitura de Byron O’Neill (MG), enquanto o linchamento de Fabiane Maria de Jesus, em São Paulo, foi reelaborado pela escrita de Diogo Liberano (RJ). A chacina policial no complexo da Maré, que ocorreu durante as “Jornadas de Junho”, foi mote para Marcio Abreu (PR). A carta de suicídio dos índios Guarani-Kaiowá está impressa no texto de Leonardo Moreira (SP) e o atropelamento do ciclista David Santos Souza, que teve o braço arrancado na avenida Paulista, foi o fato entregue a Roberto Alvim (RJ/SP).
O formato que inspira a realização do projeto é o Teatro de Revista, cuja função no início do século passado era “passar em revista” os fatos políticos da época, utilizando para isso números e esquetes autônomos, independentes, descolados um dos outros.
PROCEDIMENTOS COLABORATIVOS
Embora tenha como ponto de partida para a criação um texto “encomendado”, não podemos afirmar que o Espanca! tenha aberto mão de criar uma dramaturgia em processo. Isso porque, mais que montar os textos recebidos, o grupo tem se proposto a dialogar criativamente com o material recebido, de forma a transformá-los, reinterpretá-los, descontruí-los. Dessa maneira, preserva-se o caráter indefinido da obra a ser levada para o palco, um universo que só se constrói em sala de ensaio.
O perfil colaborativo da criação no Espanca! permanece e, talvez pela própria natureza do projeto REAL, ganha contornos ainda mais evidentes. Isso se dá pela condução que Gustavo Bones e Marcelo Castro propõem à construção do espetáculo com a chegada de novos colaboradores ao grupo – Allyson Amaral, Leandro Belilo e Karina Collaço –, além da continuação da parceria com Alexandre de Sena, Assis Benevenuto e Glaucia Vandeveld. Todos têm papel propositivo na criação de REAL, responsabilidades estas que não foram previamente definidas, mas estabelecidas no percurso.
Somente no décimo primeiro registro do processo é que aparece uma primeira divisão de tarefas e funções, partilha de responsabilidades que evidenciam seu caráter compartilhado, horizontal e polifônico.
O TODO E AS PARTES (texto do Alvim)
Coordenação: Sara
Atores: Gustavo (velho), Assis (homem), Xande (jovem)
Coreografia: Leandro (o braço)
Encontros: 2ª e 3ª
IDEIAS:
– os personagens Homem e Jovem serem bonecos
– experimentar o Velho como coro
– Leandro fará uma “coreografia para o braço”
INQUÉRITO (texto do Diogo)
Coordenação: Assis e Gustavo
Atores: Glaucia (Fantasma), Xande (Pai), Allyson (Yasmin), Assis (Esther)
Coreografia: Leandro (o espancamento)
Encontros: 5ª
IDEIAS:
– 3 homens farão pai e filhas.
– experimentar os “jogos de violência” propostos no texto
MARÉ (texto do Márcio)
Coordenação: Xande e Marcelo
Atores: Xande (Homem), Glaucia (Vó), Sara (Mulher), Allyson (Criança), Leandro (Criança), Prof (Criança)
Coreografia: Allyson (perna de pau e orixás)
Encontros: 4ª e 6ª
IDEIAS:
– experimentar um coro de crianças
– cenário “apertado”, espaço pequeno
COLIBRI (texto do Léo)
Coordenação: Marcelo e Assis
Atores: Gustavo, Sara, Marcelo
Encontros: 2ª e 3ª
IDEIAS:
– ver o vídeo que ele mandou junto com o texto
GARIS (texto do Byron, coreografia do nosso “núcleo da dança”)
Coordenação Coreográfica: Prof, Leandro e Allyson
Atores: todXs!!!!!!!
Encontros: 4ª e 6ª
IDEIAS:
– combinamos de criar uma coreografia e o texto final surgir junto com ela. Byron vai acompanhar o processo pelo menos até mês que vem.
Neste mesmo post, evidencia-se o processo colaborativo em um recado destinado a Glaucia Vandeveld, em que ela estaria fazendo parte do elenco de duas peças, mas que, na verdade, estava tudo aberto e ela poderia ficar à vontade para se jogar. E, de fato, desde então, algumas coisas se alteraram bastante nessa divisão de funções, tendo a saída de Sara Pinheiro do processo e a chegada de Eduardo Félix, do grupo Pigmalião Escultura que Mexe, à equipe de criação, entre outras modificações.
A própria condução do processo, a maneira de ele se dar, ganha novas complexidades neste trabalho do Espanca!. Trata-se da construção de uma obra que contém cinco outras obras, a priori, independentes, lançando questões de como se colocar artisticamente diante de cada uma delas, o que se percebe neste registro sobre a primeira semana de ensaios: “ainda estamos entendendo o funcionamento desse cronograma. A sensação é estranha, é difícil ensaiar 5 peças ao mesmo tempo. Talvez experimentar períodos maiores pra cada proposta seja interessante.”
Ao longo do processo, a opção do grupo tem sido olhar para cada texto não como algo pronto para ser transposto para o palco, mas sim como criaturas que ainda não estão completamente constituídas.
MONSTRENGOS
A esta altura do processo de criação, ainda não há algo que esteja pronto, fixado, formatado. O que existem são, segundo os integrantes do grupo, pequenos “monstrengos”, materiais criados a partir do confronto com o material dramatúrgico que ainda estão sendo experimentados.
Alguns estão mais encorpados que outros, o que se faz perceber não só na sala de ensaio, como pela ausência de registros mais específicos sobre eles – é o caso de “Colibri”, sobre o qual constam pouquíssimos relatos no site do projeto, e também “O Todo e as Partes”, do qual ainda se encontram mais informações, como vídeos sobre a estética dos bonecos e algumas proposições de Eduardo Félix para a encenação.
O primeiro monstrengo foi o de “Inquérito”, escrito por Diogo Liberano. O próprio autor, em seu processo de criação, utiliza-se da linguagem que propõe no texto, quando afirma no registro “O Posicionamento da Linguagem”, que “diariamente eu pergunto e respondo. Ou só pergunto. Ou só respondo”.
Um jogo de crianças, inofensivo, de perguntas e respostas é a estrutura formal escolhida por Liberano para lançar seu olhar sobre a história de Fabiana Maria de Jesus, uma mulher que foi linchada e morta após ser confundida com uma sequestradora de crianças que seriam usadas em rituais de magia negra. A saída encontrada pelo dramaturgo foi lançar um olhar para a família, para quem sobreviveu, para a pergunta de como se continua apesar de. Assim como em “Sinfonia Sonho”, seu primeiro trabalho com sua companhia Inominável, o jogo infantil é a forma de se buscar uma cena que “ao invés de um retrato do real, apostou numa composição inventada para tentar dar conta daquilo que, em vida, eu não havia conseguido realizar”.
E é o teatro como possibilidade o que nos apresenta Liberano: possibilidade de sermos sinceros, de coabitarmos um espaço-tempo único, de não encontramos respostas para o que é intolerável, mas onde se pode sempre perguntar. “Inquérito” articula esses dois planos da ficção e do real. No plano ficcional, uma família que insiste em seguir adiante, em que o pai e as duas filhas tentam compreender o incompreensível a partir de uma simples pergunta: “por que mataram a mamãe?”. De outro lado, a realidade (esta também teatral) da morta que narra sua própria história. Esta, ao falar diretamente ao espectador, tensiona o papel deste em relação à violência e ao horror que testemunha.
A cena está sendo construída com Alexandre de Sena como pai, Assis Benevenuto e Marcelo Castro como as duas filhas, e Glaucia Vandeveld como a mãe morta. No ensaio observado, trechos de momentos diferentes do texto foram compilados de forma a criar uma microcena, que estava sendo experimentada pelos atores. Nela, um sofá ocupa o centro do espaço. Vê-se pai e filha sentados, a menor no colo deles. Eles começam uma conversa banal, até que se propõe um jogo.
Não há na atuação um desejo de se aproximar realisticamente dos tipos propostos, o que poderia fazer com que Assis e Marcelo buscassem uma voz infantil e feminina para suas personagens, já que se trata de duas meninas. O teatro como ficção/invenção é assumido e reafirmado.
Em determinado momento da cena – cujos detalhes omito para não retirar-lhes o prazer da surpresa –, a realidade ficcional construída pela relação familiar é interrompida por personagens que invadem a cena, como se saltassem do mundo real para a ficção, tensionando ainda mais esses dois planos. A violência aqui se torna linguagem, ou como define Liberano, “um ato de terrorismo”.
O CORPO: “O TEXTO DOS GARIS VIROU DANÇA!”
Ainda sob a perspectiva de que o processual também transborda de uma obra para outra na construção de um percurso artístico, sendo cada novo trabalho também carregado de heranças do DNA dos anteriores, é necessário evidenciar que não é recente a relação do Espanca! com o movimento. O tai-chi-chuan e o caratê de Por Elise, o sapateado de Amores Surdos, os peixes de Marise Dinis e Sérgio Penna, além da presença da bailarina Izabel Stewart em Congresso Internacional do Medo.
Em entrevista concedida ao Horizonte da Cena ainda em 2013, Gustavo Bones e Marcelo Castro já afirmavam um desejo de diálogo, que sempre existiu em outros moldes, com artistas da dança[3].
Gustavo Bones: Antes de você chegar, estávamos aqui com uma lista imensa de vontades (risos). Com certeza surgem questões artísticas que queremos trabalhar.
Marcelo Castro: Tem um projeto que a gente já tem vontade há muito tempo, que integrou nossa pesquisa nesses dois anos de patrocínio da Petrobras, de criar um espetáculo de dança, inclusive fizemos aulas regularmente…
Gustavo Bones: Criamos “Por Elise” no estúdio da Dudude (Herrmann); no “Amores Surdos” nós sapateamos; no “Congresso Internacional do Medo” tinha o Serginho (Sérgio Pena), a Marise (Dinis) e a Izabel Stewart; depois veio “Marcha para Zenturo”, que tinha um estudo mais do View Points; e várias outras experiências de aula e oficinas. Estamos tentando executar esse projeto há um bom tempo. A gente quer fazer um estudo com cinco coreógrafos brasileiros e que isso gere um espetáculo nosso.
Marcelo Castro: Isso já gera uma outra rota, uma peça que parte de outro lugar, não mais da palavra, mas do corpo.
Essa aproximação já anunciada com os elementos da dança se faz presente em “REAL” de forma evidente com a chegada ao grupo dos bailarinos Allyson Amaral, Leandro Belilo e Karina Collaço, mas também na maneira como o processo se faz conduzir, em um confronto de linguagens entre a palavra e o corpo.
É o corpo o primeiro elemento a surgir no processo. Nos registros realizados pelo grupo, já no segundo documento compartilhado, é ele quem está em evidência no vídeo de apenas 50 segundos. Trata-se de um workshop, do qual registrou-se um momento do qual faço a descrição: Dois dedinhos a atravessar o espaço. Corpos na parede, parados. Invadem o espaço, adentram, furam. Um jogo de manipulação, pelo pescoço, contato-improvisação, repetição dos gestos do outro.
Outro registro que aparece na sequência e já se torna potencialmente incorporado ao processo, e consequentemente à obra que se desenvolve, é a “Batalha do Passinho”[4]. O post de um gari performando para os colegas aparece ainda nas etapas iniciais da criação e, no ensaio observado, ocupou boa parte das atividades coordenadas por Leandro Belilo, em que todos os participantes dançam juntos o “Passinho do Romano”.
“Anos de teatro para fazer isso”, brinca um dos integrantes do grupo durante a coreografia. “Você se sente um gringo. É triste isso, né?”, constata Assis Benevenuto, diante da falta de suingue para cumprir a missão. “Talvez nem saia coreografia, mas o corpo já está com essas informações impregnadas”, nos lembra Leandro do caráter de processo.
“O texto dos garis virou dança”, explica-me Marcelo, dando um indício de para onde apontam algumas das escolhas do grupo na relação com o texto escrito por Byron O’Neill sobre a greve dos garis que “parou” a cidade do Rio de Janeiro em pleno Carnaval. O fluxo dos corpos reais que cruzam as metrópoles está ganhando uma leitura performativa, no qual é o corpo é não apenas suporte, mas linguagem.
Isso se faz evidente no roteiro que vem sendo construído durante o processo. O texto virou ação:
Roteiro do Garis
Bloco 1
Xande no microfone – discursando (improvisando) marchinhas de protesto, palavras de ordem e de cartazes da greve dos garis;
– Corpos que transitam
– Corpo lixo (abandonados) – corpos em queda livre (corpo madeira) no espaço.
– Corpo que se joga – desconstrução e construção do corpo/ de que forma você se levanta, de que forma você se recupera
– Corpo lançado – pegadas (lança para se agarrar), suporte ( escaladas no corpo), ser levantado pelo todo
– Corpo abafado
Bloco 2
Jogo do 7 ( rua1,…rua7) – criação do Corpo Estamira
Bloco 3
Coreografia do Caminhão da Estamira
Este mesmo roteiro vai ganhando corpo ao longo do processo. Em documento compartilhado após o dia 7 de agosto, os “buracos” presentes em cada bloco vão sendo preenchidos com informações mais claras e específicas no que se refere aos textos e ações a serem executados. Onde antes se lia “improvisando palavras de ordem”, neste momento já ganha a forma de frases como “Vendendo almoço pra comprar janta”; “salário de cachorro”; “Não tem arrego”; “Tá enganando trabalhador”; “Tem meus filhos pra criar”; “Os turistas vão andar no lixo”; “Cuidamos da cidade! Quem cuida da gente?”; “Só queremos os nossos direitos”; “Deixa passar a revolta popular”; “Pacífico, ordeiro”; “Direito que é direito”; “Vergonha Vergonha Vergonha”.
Outra informação processual que aparece neste registro é a utilização de objetos, como na seguinte descrição:
Objetos (7 objetos escolhidos por cada um) espalhados pelo espaço. Em cada mudança de rua,uma pausa catando o seu lixo (objetos). Que será acoplado no próprio corpo (corpo Estamira). Após cumprir todas as ruas se posicionar na boca de cena de costas para o público e aguardar todos chegarem. Em seguida duas plataformas (uma vindo da esquerda e outra da direita no fundo do palco) se juntarão. É o sinal para que todos juntos pulem na plataforma (caminhão) fazendo a dança coreografada.
O corpo para o Espanca! assume em “REAL” não apenas uma função estética, mas também política. O que se faz notar nos 23º, 24º e 25º registros do processo, no qual os posts refletem sobre os conceitos de coreo-polícia e coreo-política, propostos por André Lepecki, sintetizados no post “ocupar o tempo para orientar o ritmo do espaço”:
“é que agrupamentos deslocam e ocupam o espaço de circulação. E assim ocupam o tempo também. E quem ocupa o tempo marca, determina e orienta o ritmo de cada espaço.”
“e aqui voltamos à concretude não metafórica do que a dança pode fazer politicamente: destrambelhar o sensório, rearticular o corpo, suas velocidades e afetos, ocupar o espaço proibido, dançar na contramão num chão rachado, difícil. É assim que ela cumpre a promessa coreo-política a que se propõe, quando ativada para a verdadeira ação”. (André Lepecki)
Todas essas questões apontadas até aqui aparecem sintetizadas em um dos últimos registros do processo, no qual as noções de política, estética, linguagem são contempladas a partir da experiência de um dos criadores ao assistir um vídeo de dança:
“Tem a força da presença de um corpo negro em cena, a leveza do figurino (tutu). A dança que é um misto de ballet, contemporâneo, dança-afro e a música que segue a mesma linha… cria uma tensão muito interessante (uma impressão que no final ela vai subir e virar um rap… e, mesmo que não aconteça, essa sugestão é muito interessante). Me lembrou o ensaio dos Garis de sexta que mesclava cenas de violência com a euforia de um coletivo de colegas se divertindo nos intervalos de trabalho, mas sempre com uma atmosfera performática porque estão na rua, com outras pessoas os assistindo. Ficou muito pra mim desde o início uma imagem do indivíduo e coletivo… achei massa pensar essas forças separadas. (…) O momento solo do Leandro é lindo também. Vendo esse vídeo que postei aqui, pensei se ele não pega uma roupa do lixo e veste para dançar. achei essa coreografia uma síntese dos nossos assuntos do REAL.”
MARÉ: PALAVRA É FLUXO, PALAVRA É MÚSICA!
Um fluxo. É assim que Marcio Abreu inicia a escrita de “Maré”, texto que teve como fato detonador a chacina ocorrida no Complexo da Maré, no Rio, em 2013, durante as “Jornadas de Junho”. O dramaturgo e diretor da Companhia Brasileira concebe seu texto como um fluxo de vozes de diferentes gerações, em que um mesmo instante é visto pelas perspectivas da vó, das crianças, do pai e da mulher. O texto, sem pontuações, diferenciação entre maiúsculas e minúsculas, quebras ou divisões, tornando a palavra, como definiu Luciana Romagnolli, “indomada”.
É como se quem falasse não fosse a boca dos personagens, mas suas memórias/consciências. Os tempos também são indefinidos, cruzados, permeáveis: não se sabe se a situação sobre a qual se fala aconteceu ou se está acontecendo, possibilitando uma percepção distinta para cada leitor que sobre o texto se debruçar.
Em sua observação de uma tarde de ensaios a partir do material de Marcio Abreu, Luciana constata que “o ensaio estava dividido em três partes: a avó sozinha trabalhando em uma partitura corporal econômica e falando para si mesma; o casal testando danças a dois, como forró e bolero, enquanto falavam o texto, experimentando o ritmo da música no ritmo da fala; e as crianças jogando ‘stop’. Tudo isso sobreposto em um tablado tão pequeno quanto um barraco onde essa família se aperta”.
Em seu relato, Luciana explicita que o espaço exíguo é utilizado para juntar as camadas simultâneas de vozes/gerações que, no texto de Abreu, aparecem originalmente isoladas umas das outras. É como se, em sala de ensaio, os criadores buscassem embaralhar essas visões. E, entre as impressões que a afetaram, ela ressalta a “música como algo forte para estruturar a cena”.
A palavra e a música, ou a palavra como música, é um elemento fortemente marcado neste processo de criação, fato que se torna evidente na análise dos documentos de processo compartilhados pelo grupo. Uma das investigações presente no processo é a relação com o hip hop – dado que inevitavelmente demonstra a aproximação dos interesses do grupo com a realidade que o circunda à medida que o local em que está instalada sua sede é o mesmo em que acontece na cidade o Duelo de MCs.
No quinto registro de processo publicado, estão lá duas letras que foram trabalhadas em um workshop chamado “Palavra e Hip Hop”, com as seguintes questões: “letra ou texto? canto ou fala? exercícios de falar/cantar/recitar”. A investigação na construção de “Maré” parece consistir em como tornar a fala ritmo, e a palavra, som. “Maré é música”, diz outro post sobre a apropriação que Caetano Veloso faz de “Circuladô de Fulô”, poema de Haroldo de Campos. O jogo que se vem buscando em “Maré” é, mais do que ampliar as maneiras de se dizer, é abrir novas possibilidades de escuta.
(*) com a colaboração de Luciana Eastwood Romagnolli.
BIBLIOGRAFIA
ARAÚJO, Antonio. A Gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2011.
FÉRAL, Josette. Teatro, Teoría y Prática: Más Allá de las Fronteiras. Buenos Aires: Editorial Galerna, 2004.
______ Por uma Poética da Performatividade: o teatro performativo. IN: SALA PRETA, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São Paulo, nº 8, 2008. (p. 197-210).
______ A Fabricação do Teatro. IN: Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 3, n. 2, 2013. (p. 566-581).
FERNANDES, Sílvia. Performatividade e gênese da cena. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 3, n. 2, 2013. (p. 404-419).
[1] Essa reflexão é a base da minha dissertação de mestrado “O processual na cena contemporânea – práticas de criação e poéticas processuais que enfatizam o percurso e a experiência da Luna Lunera na criação de ‘Prazer’” .
[2] Parte dos registros de processo da criação do projeto “REAL: Teatro de Revista Política” vem sendo registrado pelo Espanca! no seu site, material aqui utilizado para consulta. Além disso, a autora conta com dados e percepções acumulados durante a observação de um dia de ensaio da nova obra (no dia 3 de agosto de 2015), assim como com os relatos e anotações de Luciana Eastwood Romagnolli, as quais me foram compartilhadas e são citadas. Além disso, também integra essa análise a leitura de três dos textos que integram o projeto: “Inquérito”, de Diogo Liberano; “O Todo e as Partes”, de Roberto Alvim; e “Maré”, de Marcio Abreu.
[3] Entrevista concedida a Soraya Belusi, no dia 23 de maio de 2013, na sede do Espanca!, e publicada no Horizonte da Cena. Observa-se que, nesta mesma conversa, consta o cerne do projeto de convidar cinco artistas-colaboradores para a criação simultânea de uma mesma obra, o que está sendo realizado de alguma maneira no REAL. Também nesta entrevista aparece a citação a Marcio Abreu e o desejo de parceria que agora se concretiza no projeto em andamento.
[4] Vídeo gravado no prédio da Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro durante o horário de almoço dos garis Fábio Bomba e Augusto Paçoca.