— por Nina Caetano —
Crítica de “Congresso Internacional do Medo”[1], do grupo Espanca!
Já foi a um congresso? Já viu um tradutor ao lado de um palestrante que é uma grande personalidade? Já te passou pela cabeça, por um instante, que aquele tradutor podia estar te traindo? Que podia estar amaciando excessivamente os sentidos, ou simplesmente resolvendo a bagunça que sai da boca da grande personalidade? E, por alguns instantes, não te passou pela cabeça o enorme abismo que existe entre a última palavra do palestrante e a primeira do tradutor? (Grace Passô – Olho da Onça[2]).
“Congresso Internacional do Medo“ – espetáculo do Espanca! disparado pelo título do poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade – trata, antes de tudo, da linguagem, tanto no que tange à produção de sentidos quanto às possibilidades de equívoco e às impossibilidades da comunicação, ou, como diria José Márcio Barros[3], do “claro/escuro da linguagem e suas encenações”.
A estrutura não dramática da obra já se evidencia na escolha temática – um congresso – expressa também na proposta cenográfica, bastante simples: no palco, além de uma mesa de tronco, erguida sobre um tablado coberto por um tapete de pele de vaca, temos, no proscênio à esquerda, um enorme e inusitado filtro de barro e, ao fundo, dois vasos grandes de plantas e uma cadeira de rodas. Quando o público adentra a sala, as luzes estão acesas e o cenário – uma estranha mistura em que sua limpeza quase asséptica contrasta com os elementos naturais que o compõem – está entregue à observação do espectador, em um claro flerte com os recursos brechtianos, “não no aspecto de uma concepção política ou engajada, mas no gosto pelo jogo aberto da cena, pela explicitação dos mecanismos com que a linguagem se articula[4]”.
Ao terceiro sinal, as luzes se apagam e, no escuro, corpos adentram o espaço cênico. Pequenos flashes de luz formam quadros à sua passagem e criam uma certa suspensão. Os cinco congressistas, vestidos de branco, instalam-se à mesa. Pertencem a diferentes culturas, dado manifesto por suas vestimentas: um homem e uma mulher indígenas, um ocidental (visto que traja um terno), uma mulher encoberta por véus, à moda muçulmana, e um homem oriundo, possivelmente, das regiões desérticas do norte da África (leitura reforçada pelo fato dele ser negro). Dois bailarinos, um homem e uma mulher, vestidos com quimonos pretos, instalam-se, inicialmente, próximos ao filtro e permanecerão em cena durante o transcorrer do espetáculo. Na cadeira de rodas, a imobilidade da tradutora concretiza, de certo modo, uma das principais linhas temáticas do espetáculo: a impossibilidade de a palavra mediar, de fato, a comunicação e as relações humanas no mundo contemporâneo, no qual o verbo parece desgastado por um excesso de informações veiculadas pelas mídias e por uma crescente desconexão entre discurso e ação[5]. É ela quem diz:
Tradutora (sussurra): Esse definitivamente é o último congresso em que trabalho. Esses congressos me cansam e vou dizer mais claramente o que eu acho, eu acho que eles me chamam porque é mais barato chamar uma tradutora poliglota do que uma tradutora que fala uma língua só. E eu também me enervo quando dá algum problema e eles olham pra mim, como se eu não tivesse sido convidada também. Quando eles chegaram aqui, vieram me perguntando uma série de coisas sobre o evento como se eu o tivesse organizado. Quando eles falaram agora, que não sabiam o motivo de estarem aqui, me [sic] deu vontade de tomar a palavra e dizer que eu também não sei por que estou aqui. Que eu também me prometi descansar desse trabalho com as palavras. As palavras me cansam. E, sabe, nem tudo é possível traduzir. Quando eu olho algum palestrante que, por algum momento, não sabe bem o que diz, eu acho tão mais significativo do que sair por aí dizendo palavras e palavras tentando nomear algum conceito. Eu conheço esse tipo de evento. Eles ficarão horas e horas tentando conceituar a vida e quando chegarem em suas casas, em seu país, não vão conseguir sequer dizer “boa noite” para alguém de quem sentem mágoa… não sei por quanto tempo ainda ficaremos aqui (PASSÔ, 2012, p. 25).
Em “Congresso Internacional do Medo”, no entanto, a questão não é somente conteúdo temático, mas encontra forma na própria textura dramatúrgica. Textura é o aspecto de uma superfície, ou seja, a “pele” de uma forma, que permite identificá-la e distingui-la de outras formas. As texturas artificiais – a dramaturgia é uma delas – resultam da intervenção humana através da utilização de materiais e instrumentos devidamente manipulados. Em música, textura é a qualidade global do som de uma obra musical, mais frequentemente definida pelo número de vozes na música e na relação entre essas vozes. Uma textura polifônica, em música – como no teatro – contém duas ou mais linhas de voz independentes.
Fruto de um processo polifônico por excelência, o processo colaborativo, “Congresso” é, antes de tudo, “puro opsis, matéria concreta tornada visível, textura. Nessa hipótese, criar uma cena menos do que tecer um novelo de ações (…) seria constituir uma semântica de superfícies, tessitura de cores e imagens, apresentação de objetos não previamente identificados[6]“.
Embora colocada, muitas vezes, como análoga à textura, a palavra tessitura, na metáfora que estou perseguindo nessas linhas, diz respeito, por sua vez, ao trabalho de composição da textura da cena, à sua urdidura, ao seu texto. Termo que, como afirma Barba (1995: 69), “antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa ‘tecendo junto’”. E ele completa dizendo que o texto é um tecido de ações que só são operantes quando estão em trabalho, entrelaçadas, sendo que “todas as relações, todas as interações entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons e os espaços são ações. Tudo o que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua cinestesia, é uma ação”.
Apesar de estar considerando dramaturgia no âmbito da materialidade da cena e não em seu aspecto literário ou verbal, quero destacar, aqui, o trabalho realizado pela palavra. Partindo do mote contido no título – um congresso internacional – a sutil urdidura tramada pela insólita Grace Passô concretiza a discussão temática, por meio de uma interessante manipulação da palavra, em que línguas inventadas se misturam ao registro poético do habitante da Ilha do Cedro/Pau Brasil. Interessante jogo de perversão de sentidos entre a palavra expressa e sua tradução que é, sempre, uma possível traição[7].
Tradutora (traduz Reluma): Daqui eu só conheço algumas músicas que fazem sucesso no rádio.
Trumak: As músicas daqui fazem muito sucesso lá fora.
Doutor José: E também o comércio romântico…
Tradutora (traduz o doutor): E também as novelas…
Doutor José (olhando em volta): É mesmo uma pátria que sofre.
Tradutora (traduz o doutor): É mesmo um país maravilhoso!
Doutor José: Que confusão de gentes, que tanto de terra pra uns e outros, nada.
Tradutora (traduz o doutor): Quantas raças diferentes, que terra estupenda!
Doutor José: Tanta pobreza…
Tradutora (traduz o doutor): Quanta simplicidade rica!
Doutor José: Não sei como se organizam.
Tradutora (traduz o doutor): Quanta harmonia! (PASSÔ, 2012, p. 42).
Em “Congresso Internacional do Medo”, o trabalho de experimentação da linguagem é evidente, criando uma operação semiótica em que os sentidos se adensam por meio de simultaneidades e deslizamentos que operam sobre a compreensão, mas também sobre a percepção do espectador. Aqui, os diversos fios desse tecido da cena – o jogo poético com as palavras, as palestras que, proferidas em outras línguas, desconstroem constroem sentidos outros, bem como a presença dança dos bailarinos peixes em extinção – vão surgindo e desaparecendo, quase em fade, diante de nossos olhos e se configuram como elementos poderosos de um jogo que também somos convidados a jogar.
A encenação realiza uma dimensão da língua que se livra da função descritiva e comunicativa da fala dramática. Ela gera novos espaços de significação, de modo que a língua não é mais somente parte funcional da narrativa dramática, mas desenvolve um movimento próprio, que por sua vez transforma o acontecimento cênico. Desse modo, a encenação possibilita uma transformação e uma modelagem da fala teatral e com isso uma prática da linguagem própria do teatro. (BIRKENHAUER, 2012, p. 186)
E as camadas sentidos significâncias vão sendo construídas – repito, aqui nada é dado – não só pela cena, mas também por nós que, sentados nas cadeiras da plateia, somos chamados a sacrificar nossa passividade confortadora e, ativos espectadores dessa cena múltipla, rugosa, também criar.
Referências
BARBA, Eugênio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo, Campinas: Hucitec, 1995.
BIRKENHAUER, Theresia. Entre fala e língua, drama e texto: reflexões acerca de uma discussão contemporânea. Revista Urdimento (UDESC), v. 18, 2012.
PASSÔ, Grace. Congresso Internacional do Medo. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2012.
[1] Assisti ao espetáculo em 2008/2009, sendo o presente texto escrito a partir das minhas memórias e impressões de espectadora, bem como de uma rápida consulta à minha versão anterior de uma leitura crítica. Nesse sentido, as descrições contidas aqui podem se diferenciar de uma percepção mais atualizada.
[2] In: PASSÔ, Grace. Congresso Internacional do Medo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012.
[3] BARROS, José Márcio. Deslimites do medo IN: PASSÔ, 2012, p. 60.
[4] Kil Abreu, em texto que compõe a “orelha” da peça publicada (PASSÔ, 2012).
[5] Tema que retornará, em uma experimentação formal mais radical por meio do recurso ao delay, no espetáculo seguinte, Marcha para Zenturo, criado em parceira com o Grupo XIX de Teatro.
[6] Trecho do ensaio de Luís Fernando Ramos, que integrava a revista do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, no qual assisti o espetáculo, em 2008. A noção de “textura” fazia parte do conceito do Festival daquele ano.
[7] Questão que parece, também, ter sido elemento disparador da dramaturgia, como se evidencia no prefácio da peça que trago como epígrafe deste artigo.