— por Victor Guimarães —
Isso era o que me irritava, Bruno, que se sentissem seguros. Seguros de quê? Diga lá, quando eu, um pobre diabo com mais pestes que o demônio debaixo da pele, tinha bastante consciência para sentir que era tudo feito de gelatina, que tudo ao redor tremia, que era só prestar um pouco de atenção, calar um pouco, para descobrir os furos… Na porta, na cama: furos. Na mão, no jornal, no tempo, no ar: tudo cheio de furos, tudo esponja, tudo como uma peneira peneirando a si mesma…
Julio Cortázar, El Perseguidor
Para quem acompanhou a trajetória anterior do Espanca! – pelo menos até a saída de Grace Passô –, o encontro com Daniel Veronese em “O Líquido Tátil” não causa espanto. Embora seja a primeira ocasião em que tanto o texto quanto a direção de um espetáculo são assinados por alguém externo ao grupo, as afinidades temáticas, de tom e de estilo são tamanhas que, por momentos, a peça de Veronese (encenada pela primeira vez em 1997) parece um desenvolvimento natural das preocupações do Espanca!, ou uma sorte de elo perdido entre “Por Elise” e “Amores Surdos”. O gosto pela exploração do cotidiano familiar, pela espessura dos encontros íntimos, pela violência que se esconde sob a capa da normalidade; as contaminações frequentes entre a melancolia e o humor e as imprevisíveis mudanças de tonalidade; o minimalismo da encenação combinado à complexidade das invenções dramatúrgicas… está tudo lá, nas interações entre esses três atores (talvez em suas melhores performances até aqui) que ocupam um cenário despojado e fazem dele um território dramático vibrante.
Além da admiração confessa do Espanca! por Veronese, essa proximidade reenvia a uma frequência literária compartilhada por ambos os dramaturgos: o Cortázar das narrativas urbanas, como “Rayuela” e “El Perseguidor”. Embora Tchekhov seja a referência maior de Veronese – boa parte de suas peças se dedica a uma reimaginação de textos clássicos do autor russo, como em “Los hijos se han dormido” (2011), a partir de “A Gaivota” –, tanto no dramaturgo e diretor argentino como em Grace Passô há ecos notáveis de Cortázar: há esses personagens inteiramente mergulhados no próprio desespero, como que suspensos a um palmo do solo da realidade e sempre prestes a cair; esses diálogos inflamados que começam bem terrenos e logo se alçam à metafísica, para descer em seguida ao rés do cotidiano; e, principalmente, esses mundos ficcionais sempre ameaçados pela dissolução, como se uma perturbação interna – a loucura, o apego, o tédio, a droga, o medo – os fosse corroendo por dentro, até que uma intervenção abrupta – uma frase sem pontuação, um som imprevisto, um corpo estranho que cai – finalmente interrompa de um golpe o acontecer do mundo literário ou cênico.
Essa topografia ficcional sorrateiramente acidentada – esse mundo cheio de frestas e buracos que, embora renitentemente ocultados pela retórica dos personagens, são constantemente ameaçados pelo devir de um vazamento – é a marca indelével do teatro do Espanca!. A certa altura de “O Líquido Tátil”, Michael (Gustavo Bones), encantado com o poder do cinema de cristalizar imagens, pede a Peter (Marcelo Castro) que cite uma (“não três, não duas, uma”) imagem de teatro que lhe tenha ficado na memória. O personagem silencia, mas eu poderia facilmente citar três momentos singulares, três prodígios formais, três imagens insubstituíveis que o Espanca! me deu ao longo desses anos e que permanecerão vivas em minha memória para sempre (ainda que eu só tenha visto cada um dos espetáculos uma única vez): o despencar violento dos abacates em “Por Elise”; a lama que entra pela casa de “Amores Surdos”; o sangue na camisa de Peter ao final de “O Líquido Tátil”. Um princípio parece governar a intensidade dessas imagens: em todas elas, há algo de simultaneamente interno e externo, ao mesmo tempo pacientemente preparado e imprevisível, que se precipita abruptamente sobre a cena. O furo sempre esteve lá, e era possível intuí-lo, mas eis que então uma materialidade viscosa (abacate, lama, sangue) enfim vaza, toma de assalto o espectador e ressignifica todo o resto.
Em “O Líquido Tátil”, as comparações entre teatro e cinema ocupam boa parte dos diálogos – e muitas vezes soam pueris, beirando o enfadonho, em consonância com o tédio irritante que emana de um personagem como Peter (e da atuação – mais uma vez – brilhante de Marcelo Castro). No entanto, tudo o que as dissociações operadas pelos discursos de Michael e Peter definem como cisão irremediável é constantemente contrariado pela encenação de Veronese e do Espanca!. A atuação de Gustavo Bones – numa notável partitura corporal que reenvia simultaneamente à pantomima e ao burlesco de Chaplin a Jim Carrey – e o momento em que uma projeção de imagens-movimento invade a cena minimalista já seriam o bastante para comprovar a potência das contaminações entre as duas artes, mas há um princípio formal ainda mais pungente em jogo nesse teatro. O que é essa perturbação intensa e constante da cena por um elemento invisível (os abacates de Por Elise, o hipopótamo de Amores Surdos, o cachorro Titan Tinanovich em “O Líquido Tátil”) senão a potência da reserva temporal do fora-de-campo (ou do extracampo, para usar os termos de Deleuze)?
O jogo com a restrição espacial do quadro cinematográfico provoca, de Dreyer a Tsai Ming-Liang, de Bresson ao cinema de horror, a precipitação sobre o visível de uma intensidade outra, que não vemos, mas que incide sobre o que vemos. Quando acionada, a zona de vizinhança entre campo e fora-de-campo no cinema guarda um denso compasso de espera, prestes a sofrer a intervenção de um elemento externo que se precipita sobre a cena e rompe de vez o invólucro já esburacado do plano. Nas encenações do Espanca!, é também disso que se trata: da presença sensível de uma ausência, de um invisível que opera subterraneamente sobre o visível até que algo finalmente transborda e vaza.
Em “O Líquido Tátil”, a presença do cão já se anunciava desde o primeiro monólogo de Nina Hagëken – uma sorte de etimologia selvagem da palavra –, continuava nas memórias da montagem de “A Dama do Cachorrinho”, tornava-se lúgubre nos relatos sobre o “suicídio” dos antigos cachorros da casa. Impregnava os objetos – o cãozinho de pelúcia dado por Michael a Nina, que ela mete no meio das pernas e que permanece lá durante quase todo o espetáculo –, contaminava as atuações – a volúpia zoófila de Nina encarnada na sensualidade animalesca e na extraordinária voz de Grace, nunca antes tão gutural – e atingia a cenografia: o espaço localizado em um dos lados do palco, que sugere um cômodo contíguo onde está Titan, opera justamente como essa zona de vizinhança entre campo e fora-de-campo, essa espera densa contaminada pelo invisível que se assenta na restrição espacial.
Mas é apenas quando a cena finalmente explode nos ruídos, no jogo de luzes e na entrada abrupta de Peter no palco – vindo do tal cômodo, com a camisa ensopada de sangue –, que o vazamento acontece e brilha na capacidade de fazer todo o resto ganhar um sentido novo. Durante toda a peça, o espectador intuía a existência e sentia a força dessa ausência, mas é só quando ela reemerge – tornada visível por metonímia – na viscosidade do vermelho que encharca a camisa, que o “tranquilo ambiente burguês” (nas palavras usadas por Peter para descrever os Tchekhov encenados por Nina) se torna irresolutamente perfurado, tremulante, esponjoso. É então que o mundo – palco, plateia, rua – nos aparece como uma peneira deliciosamente incapaz de conter o fluxo da vida.