– por Mariana Lage —
Sobre a performance ‘Ruído’, de Marcelo Castro.
Uma das coisas de que mais gosto na linguagem da performance é o fato de ela colocar em tensão, de forma irresolúvel, as dimensões de arte e vida. Erika Fischer-Lichte, em “The transformative power of performance”, argumenta que na performance o que está em jogo é a vida, a carne mesma, tanto do performer quanto do público. O performer não representa nem encena; ele presentifica: ele vive a performance. No entanto, é fácil perceber que o estado da vida apresentado em certas performances não é o mesmo daquela vida vivida cotidianamente. (A menos que a vida cotidiana seja vivida de forma absurda, mas sigamos o raciocínio)(1).
Exemplos? Penso em três performances recentes de três mineiras: Priscila Rezende com “Gênese 9:25”, Ludmilla Ramalho com “Eu me Rendo”, e Ana Luisa Santos, com “Melindrosa”(2). A mulher nua sendo chicoteada com um terço católico ao badalar do sino da Igreja de Lourdes, em “Gênesis 9:25”, a mulher no vestido de noiva que atravessa um arame farpado em posição de rendição como se estivesse sendo mirada com uma arma, em “Eu Me Rendo”, a mulher vestida com notas de dez reais em praça pública no centro da cidade sendo desnudada pelo público que lhe toma seus pedaços de roupa, em “Melindrosa”, são todas mulheres reais em presença física e concreta naquele espaço e naquela experiência.
Essas mulheres investem uma faceta de suas experiências pessoais para se colocarem ali – e elas se colocam ali em risco. Não é encenação, como bem argumenta Fischer-Lichte a respeito da potência da performance enquanto linguagem. Não é ficção enquanto uma história imaginada e narrada linearmente, com a distância de segurança da representação, do argumento compreendido através do intelecto. É a carne mesma que está sendo colocada num espaço e numa experiência de risco, de vulnerabilidade, para o exercício de uma potência. Ao mesmo tempo, aquela não é a vida cotidiana dessas três mulheres.
A própria natureza da performance tem essa capacidade de colocar em suspenso as dimensões da arte, enquanto ficção, e da vida, enquanto experiência corriqueira, banal, cotidiana. É um espaço-tempo de experiência, que coloca a vida em questão, sem, no entanto, dispô-la numa distância de observação segura e asséptica, compreensível através do uso da reta razão. E justamente porque as artistas se presentificam nessa suspensão, nesse espaço-entre, as performances também colocam o público em questão, convocando-o e provocando-o: como você vê o que você vê?, como você se posiciona diante desse corpo e dessa performance?, você é mero observador-voyeur ou você também se coloca vulnerável aos afetos e à afetação?, como você se disponibiliza nesse jogo?
Três exemplos e três parágrafos apenas para começar o argumento de que o estado de vida e o estado de arte na performance é algo sempre em tensão, ou antes, um paradoxo que não se resolve. Até onde vida, até onde arte? Em performances vivemos, público e artistas, esse espaço-entre. Nem tanto o céu, nem tanto a terra; nem tanto a arte, nem tanto a vida, mas, sim, o lugar em que a tensão é potente e produtiva e coloca a experiência e o pensamento em movimento.
Na performance “Ruído”, Marcelo Castro explora essas tensões de “é” e “não é” entre realidade e ficção, observador e observado, a partir da criação de um espaço para a experiência, e, nesse caso, uma experiência contemplativa da vida corriqueira que segue na rua. “A ideia surgiu quando estava estudando os Viewpoints em Nova York em 2010/2011; estudando a questão do espaço e do tempo como os assuntos principais para quem está em cena”, explica Marcelo. O desejo nasceu assim da experiência direta do ator de andar pelas ruas de Nova York, maturando as categorias (3) de Anne Bogart para o tempo e o espaço, concomitante à audição sucessiva, quase ininterrupta, do álbum “Space is only noise”, do músico e DJ Nicolas Jaar. “Eu ouvia o Jaar e ficava viajando como tudo era uma relação especial que acontecia num determinado tempo. Na época, pensei ‘espaço é ruído’ e fui desenvolvendo a ideia”, conta.
A performance é, assim, diretamente ligada ao primeiro álbum do Jaar. “A sensação que tenho é que ele é tão cheio de vazio que dá espaço para as coisas acontecerem; ele cria esse dispositivo teatral”, explica Marcelo, destacando que a audição do disco não sobrepõe o som ambiente, havendo assim permeabilidade entre “ruídos” internos e externos ao Teatro. O que Marcelo faz ali, explica, é armar um dispositivo. “E uma das coisas surpreendentes é que é feito com nada. É muito simples. Música, espaço e pessoas”.
Realizado pela primeira vez em maio de 2012, “Ruído” coloca o público sentado numa arquibancada no fundo do Teatro Espanca!, e deixa as portas do espaço abertas para a rua. Entre a plateia e a rua, há cerca de 6 metros de profundidade por 3 metros de largura, deixado no escuro, como espaço da suspensão, ou recorte. Na visão de Marcelo, é esse espaço que cria a sensação de tela: “uma fresta para o olhar”. (4)
“A primeira performance foi pra mim muito chocante e muito impressionante. As pessoas que passavam na rua sempre olhavam pra dentro. Teve gente que entrou, teve gente que entrou e cantou, outro que entrou e dançou. Teve um cara que estava passando, viu a situação, entendeu, colocou o capuz (da blusa que estava vestindo) e começou a andar de costas afastando-se da gente, desaparecendo até virar apenas um ponto. Foi muito claro que ele estava dentro da proposta”, conta o ator.
O olhar dos pedestres para dentro do teatro e sua interação com o espaço, assim como o deslocamento para o espaço da rua de quem estava dentro, colocava em tensão as instâncias de observador e observado, entre a performance e o real. E mais do que tensionar realidade e ficção, essas ações, arrisco, presentificam o conceito de jogo. Há o jogo de estar ali observando quem está de fora como um real em suspensão, um real recortado, experienciado como epifania ou lânguida contemplação. Por outro lado, aquele que sai da arquibancada e se desloca para o passeio, a fim de fumar um cigarro por exemplo, coloca o jogo da observação e experiência em evidência, corporificando o estranhamento daquela proposta simples de sentar por uma hora e apenas ouvir e observar as relações no tempo e no espaço. Esse estranhamento acontece também quando o pedestre olha, observa o observador estático e, em alguns casos, decide interagir. Decide não só entrar no jogo, mas colocar o jogo em evidência. Aquilo é apenas um jogo. O que se faz ali é jogar: observar o outro como estranho, independentemente de ser público ou pedestre. A propósito, o que aqui nos permitiria qualificar uma dessas instâncias como “público”? Em ambos os lados do espaço-entre (entre a arquibancada e a rua), estão os jogadores. E o jogo se faz porque os jogadores jogam, porque se engajam, como lembra Gadamer, pelo simples prazer de jogar.
Para finalizar, uma observação de Marcelo, que trata da opção de chamar a ação de performance. “É realmente uma inversão do sentido teatral, pois quem está fazendo a coisa é o público – a coisa acontece muito na mente de quem está vendo. E quem está vendo fica meio petrificado porque as pessoas lá fora estão vivendo, e quando elas olham para dentro, elas veem o público parado, olhando pra quem está de fora”. Chamar de performance revela os dois lados da proposta de poder ser vista como teatral (a ação de quem entra no jogo) e antiteatral (uma simples janela, sem muitos recursos, para observar os acontecimentos “lá fora”).
Parafrasendo John Cage e o colocando em relação a Nicolar Jaar, podemos dizer que, se “o silêncio não existe”, o espaço vazio também não, sendo tudo apenas ruído (“Space is only noise”). O interessante da proposta do Marcelo Castro, a meu ver, é a disponibilidade para contemplarmos atentamente o contingente, na sua relação espacio-temporal, tendo uma sala e um álbum funcionando como fresta, janela ou recorte. Gosto de pensar que performances tratam de tensão, imersão e estados de atenção. E “Ruído”, uma performance que de fato borra as posturas entre público e artista, coloca bem essas instâncias em evidência. E o que importa das diferenças e distâncias entre arte e vida? A chave que muda – e qualifica tudo – está na experiência.
(1) Como diz Narcísa Tamborindeguy, “a vida é mesmo louca e absurda”, mas, de qualquer forma, acredito que a absurdez da vida e a absurdez presentificada na arte são distintas e provocam experiências de estupefação que nos levam também a lugares bem distintos. Fica de sugestão de tema para um próximo texto.
(2) Pretendo dedicar um texto a cada uma dessas performances nesse espaço do Horizonte em Cena, o qual, a propósito, agradeço a Luciana Romagnolli e Soraya Belusi pelo convite em participar como colaboradora.
(3) Anne Bogart trabalha os conceitos abstratos de tempo e espaço a partir das seguintes categorias: arquitetura, relação espacial, topografia e forma, para pensar/experimentar o espaço, e velocidade, duração, resposta sinestésica e repetição, para o tempo.
(4) Ao todo foram realizados quatro sessões de “Ruído”. Marcelo conta que uma nova sessão pode acontecer a qualquer momento.