— por Marcos Antônio Alexandre (Faculdade de Letras – UFMG/CNPq) —
Dona de Casa: Historinha eu tenho mil. Poderia contar várias aqui para vocês. Tem a da senhora que brotou uma alface no meio do corpo dela. E ela se abriu para a vida. Essa é ótima. Uma das melhores que já ouvi por aqui. Tem a daquela mulher que estava triste andando na rua e caiu no bueiro: só que lá dentro encontrou um homem na mesma situação. E então eles ficaram alegres. Olha que loucura. […] E há outras histórias sobre moradores daqui… como dizia o Valico: “histórias vitalícias” Oh! Valico.
Ela se lembra do Valico.
Dona de Casa: Ele teve um enfarte no coração e durante o enfarte começou a dizer, me dizer uma porção de palavras bonitas e espontâneas. A vida dele se enfartou e ele teve um ataque de lirismo. Eu juro. Muitas das coisas que eu falo aqui são dele, que gravei daquele momento.
[…]
Cai, vindo do alto, um abacate próximo a Dona de Casa. Ela sente medo.
Eu sou aquela que há alguns anos plantou um simples pé de abacate no quintal de sua casa. Ele cresceu. E então eu vivo assim. Assim! (ela sente medo) Cuidado com o que planta no mundo! Mas por aqui, como eu, existem outros moradores desprotegidos, mesmo com cães dentro de casa. Companheiros de muros: muros de tijolos, muros de pele. Sabe “proteção” é mesmo bem importante. Eu, por exemplo, sempre quis colocar colchões largos em volta do pé de abacate de minha casa. […] (PASSÔ, Por Elise, 2012, p. 14-15)
Joaquim: Boa noite. Obrigado por terem vindo. Desculpem começar assim, cortando o sonho de vocês, mas para que tanto suspense? Todas as histórias do mundo já foram contadas. Essa é só mais uma história de uma família comum, que toma café, em que um briga com o outro, em que um adoece, enfim: com nossos problemas cotidianos. No começo, este telefone vai tocar, porque meu irmão, que mora longe, está com muitas saudades de nós. Depois nós vamos ficar aqui, convivendo com nossos hábitos particulares; até que no final o telefone vai tocar novamente, nós vamos atender e receber a notícia de que meu irmão se suicidou. A nossa história é essa.
Vocês são grandes, eu sou grande, ninguém aqui é Pequeno… todo mundo aqui sabe onde está. Todos sabem que amanhã eu vou repetir as mesmas coisas que eu estou falando agora. Todos sabem que amanhã eu vou entrar nesse lugar e dizer:
Boa noite. Obrigado por terem vindo, mas todas as histórias já foram contadas… […]
É isso: todas as histórias do mundo já foram contadas… Vocês sabem: em alguma hora, um celular vai tocar aí (apontando o espaço da plateia), algumas pessoas vão pensar: “Nossa, que falta de educação deixar o telefone ligado aqui!” Aí o dono ou vai desligar seu telefone para ser fiel à educação que sua família lhe deu, ou vai, sem culpa, atender, falando baixo: “Oi, tô em outra realidade! Depois te ligo!” […] (PASSÔ, Amores Surdos, 2012, p. 18-19)
“Há que ser imparcial ao voltar o olhar para uma produção artística”, reza o manual de crítica tradicional. Não obstante, na minha concepção analítica, esta característica sempre é – ou deveria ser, em nível geral, – colocada em xeque, pois, em primeiro lugar, só me proponho a discorrer sobre algum trabalho artístico pelo qual sinto algum tipo de identificação e há que se destacar que as identificações nem sempre estão no âmbito do positivo. Em segundo lugar, considero que todas as propostas espetaculares apresentam aspectos positivos e negativos que merecem ser destacados. Não vejo sentido evidenciar os aspectos negativos quando não for para favorecer ao crescimento do trabalho do grupo que está recebendo a minha leitura.
Neste sentido, falar sobre o trabalho do Espanca é um privilégio, pois a minha relação com o grupo está dentro do universo dos afetos que tanto prezo. Apesar de meu objetivo aqui ser manifestar o meu olhar crítico, não me privo de destacar as minhas subjetividades pelo fato de considerar o grupo um dos coletivos favoritos dentro do contexto mineiro. Diante de seu já vasto repertório, elejo para esta breve reflexão os seus dois primeiros trabalhos, “Por Elise” e “Amores Surdos”, pois se tratam de encenações singulares que me permitem refletir sobre distintas possibilidades de leituras: os espaços intervalares da memória, os lugares de representação das identidades dos sujeitos e de suas subjetividades na contemporaneidade, o teatro pós-dramático, ecos de um realismo mágico.
A peça “Por Elise” foi escrita, em 2005, por Grace Passô, durante o processo de criação do espetáculo, em parceria com os atores Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo e Samira Ávila, sendo que esses últimos autores foram substituídos posteriormente por Sérgio Penna e Renata Cabral. Por sua vez, Amores Surdos estreia em 2006. No elenco, além da autora, Grace Passô, Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo e Samira Ávila, que foram substituídos, respectivamente, por Assis Benevenuto (que assume a personagem Joaquim, interpretada na primeira montagem por Gustavo Bones, que, por sua vez, passa a interpretar a personagem Pequeno) e Mariana Maioline, em 2009.
Em nossa contemporaneidade, muito se discute sobre teatro pós-dramático e os argumentos e proposições de Hans-Thies Lehmann. Patrice Pavis, no artigo “Teatro Pós-dramático” (2014), traça um panorama sobre o conceito, apresentando as origens, alguns problemas, desafios e encorajamentos. O crítico elenca quatro desafios, entre os quais, para esta reflexão, destaco “a heterogeneidade”:
o dramático (o textual) e o cênico (o performativo) estão claramente imbricados; daí resulta um objeto artístico e uma noção teórica (o PD) bastante heterogênea, entretanto adaptada às obras e ao mundo com o qual nos relacionamos. Nenhuma teoria dos gêneros dramáticos, e ainda menos uma teoria das práticas cênicas, seriam capazes de incluir todos esses espetáculos.
Os diferentes espetáculos (performances) do PD não se definem por uma essência ou por características comuns, mas sim por práticas cênicas e sociais radicalmente diferentes umas das outras. Não somente a representação é a soma heterogênea das artes, dos materiais, ou dos discursos, mas eles próprios são heterogêneos e não específicos […] (PAVIS, 2014, p. 16)
Julgo pertinentes as considerações de Pavis pelo fato de o crítico se mostrar consciente da imbricação, da heterogeneidade e das diferenças que se fazem presentes entre as propostas espetaculares contemporâneas. No caso dos espetáculos aqui discutidos, apesar de distintos, considero que ambas as encenações foram produzidas com referências nos argumentos expostos por Pavis, trazem elementos que dialogam entre si e, por sua vez, são estas singularidades que me interessam.
Se, em “Por Elise”, temos a figura emblemática da personagem Dona de Casa que inicia o espetáculo anunciando que “tem mil histórias para contar” e, como uma “narradora brechtiana”, abre um leque de poéticas textuais que passam a ser divididas com os espectadores; em Amores Surdos, temos a presença de Samuel, que abre o espetáculo lendo uma carta cifrada e rebuscada: “Sabeis o quanto o dia a dia encerra os nossos sentidos, desenha nossas almas no hábito e, portanto, o quanto a vida cá nessas quatro paredes não é doce, branda ou suave. […]” (p. 17), que tudo indica haver sido enviada pelos vizinhos moradores do apartamento superior com os quais a família não estabelece uma relação “amistosa”; para, em seguida, entrar em cena a personagem Joaquim, que como um contador de histórias “contemporâneo” – por que não pós-dramático? – também quebra – brechtianamente – o pacto ficcional, revelando ao espectador um dos desfechos da trama – a morte do irmão em um país estrangeiro longe da família. Assim como em “Por Elise”, sentimentos de solidão, medo, incapacidade e incomunicabilidade são evidenciados também em “Amores Surdos“.
Os sentimentos, subjetividades e as identidades fragmentadas de cada personagem são desvelados nas ações físicas e na atuação de cada ator. Em Por Elise, uma Dona de Casa, a suposta Elise, uma mulher contadora de histórias (uma griot), aquela que sabe a história de todos, mas não é capaz de lidar com a sua, que cria galinhas, mas tem dó de matá-las; um Funcionário, que se veste com uma roupa que tem uma proteção de espuma, pois trabalha lidando com cães, não se envolve com as coisas que o rodeia, junta dinheiro para ir para o Japão e tem a função de sacrificar o Cão (Homem-Cão) da personagem Mulher, uma jovem, vestida de vermelho, frágil, sensível, que tem no seu cão a única possibilidade de afeto e tem o seu caminho cruzado pelo Lixeiro, que corre o tempo todo atrás de um caminhão de lixo, imaginando que o mar é o seu horizonte, a possibilidade de fuga, de viagem, de encontros. Talvez, esta personagem represente a utopia. A presença da personagem Homem/Cão na trama é fundamental para o desenvolvimento e desenlace da obra. Se, em princípio, ela possa ser vista e interpretada apenas por um ator vestido com um moletom marrom, sua movimentação, ao longo do desenvolvimento do espetáculo, vai alternando com ações tipicamente humanas – andar sobre as duas pernas e beijar a boca das outras personagens, que traz uma forma de manifestação do afeto humano e, ao mesmo temo, remete às lambidas, que são uma demonstração de afeto dos cães. Os trejeitos trazidos para as cenas também nos remetem aos de um cachorro: os latidos (palavras/brados/poéticas textuais) próprios de um cão, brincadeiras (partituras) corporais como saltar ou bater as mãos (patas) em sua dona. Com a interpretação do Homem/Cão, Marcelo Castro assume as características de um ator-performer, aquele que Pavis se refere como ator pós-dramático:
O ator PD é um ator performador: o performador não tenta construir nem imitar um personagem, ele se situa num cruzamento de forças, dentro de um coralidade, inserido num dispositivo que agrupa o conjunto de suas ações e de suas atuações físicas. Ele se apresenta como uma simples presença da pessoa tendo subtraído o personagem, ou como numa competição de resistência vocal e física (Pollesch, Castorf). Ele não é mais obrigado a entrar nas emoções do espectador por meio da imitação ou da sugestão de suas próprias emoções (Einfühlung), mas segundo a feliz formulação de Roselt, ele deve sair da identificação (Ausfühlung), abandonando o pântano da simulação das emoções, para alcançar as suas próprias emoções, tal qual um desportista, um intérprete musical, um membro de coro, um técnico ao serviço não da imitação humana e de uma ilusão teatral, mas de um coletivo de enunciação.
Na minha leitura, o ator-performer e sua personagem atuam no limiar entre o representacional e o ficcional, jogando com uma tessitura corpórea, deixando que os espectadores se sintam envolvidos pelas poéticas textuais sugeridas por cada cena, que todos se vejam embebidos pela “ilusão teatral”.
Estas poéticas textuais se manifestam em outras partes da encenação como no momento em que o público presente – ou pelo menos parte dele – reconhece, por meio de uma reminiscência de memória, uma música que lhe é familiar: a mesma de um caminhão de gás que passava na porta da casa onde residia em um bairro da periferia de Belo Horizonte ou de uma cidade do interior das Minas Gerais, ou seja, trata-se da música “Pour Elise”, de Beethoven. Estas subjetividades se corporificam nos diálogos entre a Mulher e a Dona de Casa e, dentre tantas pérolas poéticas ditas, eclode a fala da Mulher, um jorro de melancolia: “O caminhão de gás. Que música bonita para se comprar gás chorando, não é?” (p. 53). A sequência é um dos momentos mais belos da encenação:
Mulher experimenta para si a Cerimônia das Palmas, enquanto se ouve a música ‘Pour Elise’, de um caminhão de gás que passa por ali.
Mulher procura sua força. Faz a sua Cerimônia das Palmas.
Mulher: Eu sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar. Eu sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar! Deus, eu não vou lhe incomodar. Eu juro. Pode ficar aí. É só pra ficar olhando. Eu vou me levantar daqui sozinha e vou voltar a correr porque é da Ordem. E, se for necessário, eu vou começar tudo de novo. Vou acordar de manhã, fazer o café e ligar a secretária eletrônica, o alarme, e vou colocar cacos nos muros, e olhar meu jardim e correr novamente. Porque eu sou forte, porque eu sou forte.
Ela chora. Ela chora.
Mulher: E vou criar outros instantes e ninguém vai perceber que estou criando, porque todos vão se envolver! TODOS! E que venham os fins, que venham todos os fins, porque eu sei recomeçar, eu sei! Quem respira por mim? Quem respira por mim? Porque eu sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar. CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR. CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR. CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR! (p. 54-55, maiúsculas do original).
As palavras ressoam em tom de lirismo e de prédica e desvelam um fluxo de pensamento em que a subjetividade da personagem é apresentada, em princípio, de forma desconexa, mas, em seguida vai ganhando contornos de esperança, de desejo de mudanças e, novamente, o mar é a metáfora que representa esta possibilidade de transformação.
Ao final, depois de o espectador entrar em contato com as identidades fragmentadas de todas as personagens, depois de conhecer as fragilidades dos sujeitos em seus encontros casuais e por meio de suas histórias entrecortadas, fica latente o latido-bramido do Homem-Cão, que encerra, alegoricamente e em tom didático, o espetáculo: “CUIDADO. CUIDADO COM O QUE TOCA. COM A CAPACIDADE QUE GENTE TEM DE SE ENVOLVER COM AS COISAS. COM O AMOR, QUE ESPANCA DOCE. CUIDADO. FAÇA ISSO POR MIM. POR MIM! POR MIM! POR MIM!” (p. 57, maiúsculas do original).
Os sentimentos também podem ser considerados um dos motes da dramaturgia e da encenação em Amores Surdos. O pacto estabelecido com a personagem Joaquim logo ao início da encenação, além de revelar ao espectador que o irmão, que vive em outro país, irá morrer durante a encenação, como já foi descrito, também deixa transparecer que ele é sonâmbulo e é o seu sonambulismo que passa a desvelar as subjetividades de toda a família, composta por ele, o filho mais velho, que tem uma relação mal resolvida com a Mãe; o Pai, Vicente, que é citado o tempo todo durante a encenação, mas não aparece; a Mãe, superprotetora e controladora de toda a família, carinhosa em alguns momentos e, em outros, ríspida com os filhos; Samuel, frágil e inseguro, vai começar o seu primeiro dia de trabalho, mas não se sente seguro para encarar o mundo exterior à sua casa; Graziele, uma adolescente, que usa o tempo todo um headphone que ganhou de presente do irmão que vive fora, ela “está na fase em que imagina a vida como um clipe de música (p. 23); Pequeno, tem crises de asma, recusa-se a calçar os sapatos, é apaixonado pela menina do apartamento de cima, tenta durante toda a encenação contar à família um segredo: “Mãe… Sabe naquele “quando” que eu botei gesso no braço? […] É que… Nada não… (p. 33)”; Junior, o irmão que vive em outro país, liga para casa constantemente demonstrando que se encontra extremamente solitário: “Alô, Junior? Como vai? […] mas por que está com essa voz/ Júnior! Você está chorando? Calma, o que você tem? que foi? Aconteceu alguma coisa? Aconteceu? Junior!” (p. 50), um vetor que justifica e nos permite entender depois a suposta morte anunciada pela personagem Joaquim.
A relação com Os Rinocerontes (1959), de Ionesco e um possível diálogo com a estética do absurdo tornam-se evidente na dramaturgia e na encenação de Amores Surdos. No entanto, prefiro destacar, nesta leitura, ecos do Realismo Mágico – assim como os vislumbro, em Por Elise, nos abacates que pendem e caem do teto e, poeticamente, provocam, espancam palavras doces como aquelas deixadas para o filho pela personagem Valico quando, enfartando, poetiza: “OH VIDA, FARPA DE MADEIRA INTENSA! A NATUREZA NÃO É DOCE, OS FRUOS É QUE SÃO” (p. 25, maiúsculas do original) – quando Pequeno revela à família que trouxe um hipopótamo do zoológico, que, no começo ele o colocava sua piscininha, mas o bicho cresceu e ele acabou o deixando no quarto do irmão Júnior. A sua ideia era aprender a respirar com o animal, pois os hipopótamos têm um pulmão enorme, assim ele se curaria de sua asma. Pequeno revela que William, nome que deu ao seu bicho de estimação, já vivia com a família há cinco anos e que havia comido o Pai logo quando chegou ao apartamento. Apesar de uma história “surreal” (no sentido trivial da palavra) e fantasiosa que parte de uma perspectiva de uma criança, como em uma narrativa de Gabriel García Márquez, os conflitos da família e a figura alegórica do animal se fazem críveis aos olhos do espectador. O universo do realismo mágico (maravilhoso) se configura: desprender-se da realidade por meio de uma história, em princípio “fantástica”, descrita de forma “realista” dentro de uma narrativa, neste caso, dentro das ações dramatúrgicas.
Quando é relevado que o hipopótamo engoliu o Pai, a família, que em si já era desestruturada, fica em pânico, Joaquim quer matar o animal: “SE NÃO MATARMOS, ELE VAI ENGOLIR MAIS UM DE NÓS!” (p. 62, maiúsculas do original); Graziele teme pelo irmão; Samuel, mais uma vez, volta para casa, pois não consegue sair para enfrentar o primeiro dia do trabalho e insiste tocando a campainha, chorando desesperadamente, implorando para que lhe abram a porta; a Mãe, num primeiro momento, bate no Pequeno, grita. Tudo isso acontece em um ritmo que vai crescendo ao som de uma música erudita (uma alusão à família dos vizinhos que ouvem música orquestrada muito alta, são cultos, mas não se entendem), em que eclode o sentimento de incomunicabilidade entre todos os membros da família. Até que a Mãe, finalmente, toma para si a responsabilidade:
Mãe: (digna, surpreendentemente forte) NINGUÉM VAI MATÁ-LO. ESSA É A NOSSA REALIDADE. TEM COISAS QUE NÃO SE MATA. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. ESSA É NOSSA REALIDADE, NÃO SE ARRANCA A COLUNA POR CAUSA DA DOR NAS COSTAS, O GRANDE BICHO VAI CONTINUAR AQUI, NESSA CASA, DENTRO DE NÓS. DENTRO DE NÓS. NINGUÉM VAI MATÁ-LO. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. TEM COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS. (p. 62-63, maiúsculas do original)
Assim como em Por Elise, na fala da Mãe, a repetição aqui ecoa nos sentidos do espectador e essas “COISAS QUE FORAM FEITAS PARA SE VIVER COM ELAS” assumem conotações múltiplas em nossa contemporaneidade, assim como a lama que vai “sujando” o figurino dos atores/personagens aos poucos ao longo do espetáculo e ao final toma conta de todo o palco e se converte em um macrossigno que pode ser lido a partir de distintas perspectivas: o desencontro dessa família retratada em cena, as dificuldades de relações na nossa contemporaneidade, esse “hipopótamo” que temos que “engolir” em nosso cotidiano – que cara/rosto ele representa/tem?…
A trilha sonora nos dois espetáculos é fundamental para propiciar a reflexão diante os olhos da plateia. Se, em Por Elise, a música de Beethoven aciona um memória coletiva do público; em Amores Surdos, nos minutos finais, depois de todos se enfrentarem e, pela primeira vez, se olharem verdadeiramente, a Mãe traz para a cena um balde, panos de chão e vassouras e os entrega para Graziela e Joaquim, que começam a limpar o chão, enquanto Samuel continua implorando, do lado externo do apartamento, para entrar (o lar aqui, ainda que desestruturado, como já foi explicitado, é o único lugar onde ele se sente “seguro”). É introduzida a música “Pérolas aos poucos”[1], de José Miguel Wisnik, e, nesse momento, todos tentam organizar o espaço como se fosse possível reorganizar as suas vidas. Diante do caos instaurado em cena, a personagem Pequeno cresce; talvez, o único sujeito daquela família que tem a sua identidade tocada, aquele que passa por um processo real de transformação, e o grande signo desta transformação são os sapatos.
O menino calça o seus sapatos pela primeira vez. E, calçado com os seus sapatos, faz o seu ritual de sapateado. Durante todo o espetáculo a família, simulando uma aparente harmonia realiza um ritual de café-da-manhã ao som de uma música, onde a Mãe e os filhos Samuel, Joaquim e Graziele dançam sapateado enquanto Pequeno toca o seu piano de calda construído com o seu jogo de peças de montagem de madeira. A Mãe grita pelo pai Vicente, chamando para unir-se à família para o ritual do café da manhã. Tudo isso revela a potência do ato final da personagem ao calçar os sapatos e realizar o seu solo de sapateado .
Por fim, ao final da encenação, o telefone toca e Pequeno se dirige à plateia dizendo: “Vocês, por favor, já podem ligar seus celulares. Alguém pode estar chamando por vocês, e isso é muito importante.” (p. 64) O telefone toca insistentemente… As palavras-“oráculo” de Joaquim se cumpririam?…
REFERÊNCIAS
PASSÔ, Grace. Amores Surdos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012
PASSÔ, Grace. Por Elise. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012
PAVIS, Patrice. Teatro Pós-dramático. In: BAUMGÄRTEL, Stephan e CARREIRA, André. Nas fronteiras do Representacional: reflexões a partir do termo “Teatro Pós-Dramático”. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014. p. 9-23.
[1] Eu jogo pérolas aos poucos ao mar/ Eu quero ver as ondas se quebrar/ Eu jogo pérolas pro céu/ Pra quem pra você pra ninguém/ Que vão cair na lama de onde vêm// Eu jogo ao fogo todo o meu sonhar/ E o cego amor entrego ao deus dará/ Solto nas notas da canção/ Aberta a qualquer coração/ Eu jogo pérolas ao céu e ao chão// Grão de areia/ O sol se desfaz na concha escura/ Lua cheia/ O tempo se apura/ Maré cheia/ A doença traz a dor e a cura/ E semeia/ Grãos de resplendor/ Na loucura// [eu jogo ao fogo todo o meu sonhar/ eu quero ver o fogo se queimar/ e até no breu reconhecer/ a flor que o acaso nos dá/ eu jogo pérolas ao deus dará]