— Luciana Romagnolli —
Crítica de “A Pereira da Tia Miséria”, do Núcleo Ás de Paus.
Diferentemente de estados do Sudeste e Nordeste especialmente, o Paraná não tem tradição forte em espetáculos de rua nutridos pela cultura popular. Em Curitiba, onde se concentra a maior parte da produção – e dos recursos –, o próprio fator climático responde em parte por essa condição, bem como a opção por outros caminhos estéticos mais enraizados na dramaturgia literária ou em experimentações contemporâneas. É surpreendente, pois, o percurso do Núcleo Ás de Paus, de Londrina, no norte paranaense, com “A Pereira da Tia Miséria”, vencedor do prêmio Gralha Azul – o principal do estado, mas nunca antes concedido a uma criação que não fosse produzida na capital.
“A Pereira…” é um espetáculo de rua que se aproxima do imaginário de Ariano Suassuna e de ideias do paraibano para o movimento armorial, tais como a encenação ao ar livre, pela oralidade, de uma narrativa em versos e cantos sobre personagens míticos trajando figurinos imponentes feitos de farrapos. Outra associação possível é com o cruzamento de erudito e popular presente nos trabalhos do Grupo Galpão, com quem partilha ainda características como o uso da perna de pau.
O recurso insere-se como um prolongamento dos corpos dos atores a conferir-lhes estatura irreal e um desafio constante a cada movimento, fundamentais para constituir o aspecto onírico da fábula. Além das pernas-de-pau, os atores portam uma espécie de bonecos-bengalas de uma perna só, ampliando ainda mais as possibilidades do corpo humano desenhar no espaço formas fantasiosas que apelem à imaginação.
Sob a simplicidade demandada pelo espaço da rua, a cena arma-se com impressionante senso plástico para conferir beleza a um contexto de pobreza; sem fazer da estetização uma operação higienizadora, mas, ao contrário, como uma forma de capturar o olhar para onde tantas vezes se devia.
O cenário resume-se à estrutura de uma árvore, feita de escada, guarda-chuvas e frutas de tecido, ambos de textura esburacada, solução altamente expressiva nos campos imagético e semiótico. Também os figurinos, especialmente o de tia Miséria, mostram a riqueza do acúmulo de camadas com distintas cores e texturas de materiais desvalorizados. São as fontes de encanto visual para um espetáculo que se volta à crítica social, embora apresente um universo mágico, mantendo certo distanciamento – e tom de frieza – em relação ao espectador, convocado a traçar as relações entre a alegoria da cena e a realidade ao redor.
“A Pereira…” adapta um conto popular espanhol de mesmo nome, centrado na alegoria de um embate entre a miséria e a morte, que afirma a perpetuação da primeira e a necessidade, apesar de tudo, da última. A potência dos diálogos está na construção poética em frases rimadas, por vezes cantadas, das quais se colhe aforismos cheios de lirismo e contundência social, como “a miséria abriga sempre aquele a que toda a gente angustia” – constatação da exclusão.
A cadência de acontecimentos gerados pelas visitas de dois meninos famintos, um mendigo e a própria morte, contudo, está à serviço da efetivação dessa alegoria mais do que de um desenvolvimento da curva dramática do conflito, que facilitaria a manutenção da atenção instável da rua – de adultos e crianças. Para os pequenos, a linguagem visual lúdica é mais acessível do que a narrativa versificada. Para os crescidos, vibra em cena o poder de síntese sobre a tragédia humana de uma realidade miserável, associada à perda de controle sobre o alastramento da fome no mundo.
*Espetáculo visto em 15 de agosto de 2015, em Itajaí/SC.