por Luciana Romagnolli
Fotos de Annelize Tozetto. |
Está na base do processo criativo do grupo carioca Teatro Inominável deixar as inquietações que o movem determinarem a forma do espetáculo a ser criado. Foi assim com Sinfonia Sonho (Fringe 2012), ao narrar o massacre de alunos em uma escola recorrendo a fragmentos poetizados de atuação: o grupo respeitava uma distância dos acontecimentos, ciente de que seria impossível compreender o horror. Já Vazio É o Que Não Falta, Miranda (Fringe 2013) tomava os desacertos e a inconclusão de Esperando Godot como elementos estruturantes, de modo que a máxima beckttiana “tentar de novo; falhar de novo; falhar melhor” se transformava num jogo de improvisações.
Concreto Armado coloca o grupo outra vez diante de um horror impossível de ser nomeado – uma condição buscada pelos atores e pelo diretor Diogo Liberano já no próprio batismo da companhia. Desta vez, porém, é ao horror sentido nas ruas, entre reformas para a Copa do Mundo e retaliações a manifestantes, que o Inominável busca dar forma no espetáculo que estreou na quarta-feira (26), pela Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba, no Teatro Paiol.
Talvez pela descrença na possibilidade de golpear diretamente o cerne dos acontecimentos, até porque resultam de uma complexa teia de condições políticas, econômicas, sociais, históricas e culturais, o Inominável cria uma fábula sobre estudantes de arquitetura envolvidos numa pesquisa de restauração patrimonial. Esta é uma maneira humanizadora de transitar pelas questões, tratando de pessoas, não de estatísticas.
Contudo, as histórias não demonstram ainda força para se sustentar entre as brechas de denúncia social que se abrem. Concreto Armado teve uma estreia difícil. O espaço do Paiol pareceu reduzido para a movimentação dos atores e, ao mesmo tempo, a proximidade extrema da plateia fez com que as atuações chegassem ao público sobrecarregadas. Vem daí um lugar delicado que não é nem o da identificação com aqueles dramas nem o de um distanciamento reflexivo.
Diogo Liberano, o diretor. |
Se a fábula é o concreto armado, as fissuras surgem na forma desencaixada como as cenas se sucedem e na intrusão de atos performáticos. O mais forte deles é a entrada do diretor em cena, proporcionando uma experiência física de desconforto (dele) que é sentida pelo espectador e ativa leituras livres sobre os acontecimentos em pauta.
Esse tipo de despertar da reflexão crítica individual, sem a pretensão autoritária de conduzir o pensamento a sentidos fechados, é uma busca presente em toda a obra, por meio de simbolismos e de uma narrativa poetizada.
Contra ela, contudo, está a indefinível construção das atuações, que tentam dar conta ao mesmo tempo de um diálogo coloquial de jovens cariocas, do fluxo de pensamento deles, da dinâmica de atenção instável no Facebook, de memórias romantizadas, gestos abstratos simbólicos e estados de presença – tudo isso sob a narrativa onisciente do diretor.
Há de se pensar que nem sempre a concorrência de formas e sensibilidades distintas em um espetáculo cria um organismo pulsante, complexo – como o são outros trabalhos do Inominável. Por vezes, o efeito é justamente uma despotencialização do conjunto. Dizer que falta costura entre esses elementos, então, não é pedir que os pontos se fechem e, com eles, os sentidos se estabilizem, mas que a dramaturgia não os deixe soltos a ponto de se desfazerem.
Há uma grande aposta do grupo no poder do simbólico e em que o espectador busque além do palco as conexões e os sentidos, como na cena em que o nome de Gleisi Nana (ativista carioca morta em um incêndio após denunciar a ameaça de um policial) é citado sem contexto. Se o ator capta o espectador pelo olho, logo o perde na prolongação desta ação a cada um dos indivíduos presentes na plateia. Cenas como esta ou o longo silêncio sustentado por uma atriz prescindem ainda de ritmo e de presença para surtirem outro efeito que não o desligamento entre palco e plateia.
Se consideradas a urgência e a potência explosiva dos temas nos quais resvala, o espetáculo tem à frente um processo de maturação para que o organismo se torne pulsante, a intenção mobilizadora se realize e o espectador possa cumprir sua função. Cabe a ele, ativamente, perceber fissuras a partir das quais escavar o oculto das relações em sociedade. Para isso, porém, antes o público precisa ser afetado.
Concreto Armado trata justamente daquilo que não mostra – como, por exemplo, a denúncia especificamente da morte de Gleisi Nana, e, amplamente, da política, da polícia e do empresariado que oprimem. Mas como dar forma ao que não está presente, se nem o que se faz visível é precisamente delineado? Eis uma ambição difícil de alcançar – nem por isso menos importante.
* Espetáculo visto em 26 de março de 2014, no Teatro Paiol, durante o Festival de Curitiba.