– Por Soraya Belusi –
Ao comentar sobre o texto “O Declínio do Egoísta Johann Fatzer”, o pesquisador, dramaturgo e diretor da Companhia do Latão, Sérgio de Carvalho, destaca seu caráter declaradamente experimental e inacabado, sendo a obra muitas vezes chamada por “Fragmento Fatzer” e/ou “Material Fatzer” – do qual Brecht só publicou um núcleo, constituído de três partes e um coro, em 1931.
“Nunca completado, o ‘Fragmento Fatzer’ se tornou uma espécie de referência necessária quando o dramaturgo Heiner Müller apontou ali um sentido modelar, não só para sua obra pessoal, como para toda a dramaturgia política do século 20”, analisa Carvalho. Tal afirmação sobre o caráter laboratorial e referencial dos esboços-textos escritos por Brecht vai ao encontro da abordagem pela qual o grupo Teatro Máquina se relacionou com o próprio material textual que deu origem a “Máquina Fatzer – Diga que você está de acordo!”.
O coletivo cearense, em atividade continuada desde 2003, propõe, assim como sugere o título do espetáculo – que faz dupla referência ao nome do próprio grupo e, talvez, também ao Hamlet-Machine de Heiner Müller –, sua própria versão da situação e dos temas escritos por Brecht, tornando-os pré-textos, linguagem a ser devorada, decifrada e desconstruída, e sintetizada em repetições e padrões de movimentação gestual e vocal, em que se evidenciam a dimensão laboratorial que vai da gênese à cena.
Essa evidenciação se faz presente na aceitação do inacabado como forma, como poética, como dramaturgia, em que os esboços de personagem constroem e destroem aos olhos do espectador a certeza do sentido, através de uma língua inventada e sem sentido, este sim presente nos corpos, nos estilhaços de humano que se desenham em cena, na fragmentação permanente das relações e do sentido, como se a linguagem, a fala, o texto, já não dessem mais conta de dizer alguma coisa, de significar algo em um contexto de guerra.
A “fábula” da situação proposta por Brecht – em que quatro soldados desertores se veem confinados sob a “liderança” de um deles – é transformada em plataforma para a construção de desenhos no espaço; para a criação de jogos entre os corpos que se submetem, violentam e subjugam; para a dissolução da linguagem como veículo de sentido. Os elementos do texto original permanecem lá – o confinamento, a busca pelo alimento, as “tentativas” de consenso, a figura feminina –, mas são apresentados de maneira tão sintética e instável que funcionam apenas como sugestões, e delegam ao espectador o exercício de também aceitar as lacunas.
É justamente dos vazios que parece nos falar o espetáculo. A língua se apresenta em cacos, em que o sentido se faz presente mais na sonoridade do que nas palavras, estas inventadas e reinventadas aos olhos e ouvidos do espectador. As pequenas dimensões criadas pela concepção cenográfica, em contraposição com o espaço vazio ao redor no palco, recriam o paradoxo de liberdade x confinamento, assim como a repetição e a tensão dos fragmentos proporcionam a percepção do tempo circular e indefinido.
A dimensão laboratorial que se manifesta na criação do espetáculo – em que o “Material Fatzer” foi recriado e relido pelos criadores sem um modelo a ser atingido e assumidamente inacabado – transborda também para a dramaturgia da cena, esta também com formulações instáveis, que se desconstroem, que se assumem incompletas.