por Luciana Romagnolli
Ilhas. A solidão manifesta-se esteticamente, sensivelmente, na encenação de “Entre Dois Continentes da Morte”, dirigida por Marcel Gritten e apresentada na Mostra de Dramaturgia do Sesi-Teatro Guaíra no sábado. Cada ator, cada personagem, é isolado sob um foco de luz suave, cumpre seu destino em separado, deixa que os vazios entre as falas ocupem os espaços entre os corpos.
Não se tratam porém de um isolamento radical, como tem-se visto em textos e cenas contemporâneos que recusam em absoluto a relação. Esta acontece, em toda sua preciosa fragilidade, e o modo como os desenhos de cenas e vozes configuram-se evidencia o delicado do encontro. “Encostei-me a ti sabendo bem que eras nuvem”, escreveria Cecília Meirelles num poema.
Como ilhas são também os objetos cenográficos. Ou icebergs, deixando à vista apenas o cume, o índice de um universo mais vasto: os troncos e o cachorro, o banco e a mulher, a janela com o teclado e o homem. Até mesmo as notas musicais apenas indicam uma composição maior. Nesse espaço de delicadeza, o tempo é uma matéria precária, que não se fixa na retina, afirma-se em sua impermanência.
Os corpos dos atores, em sua dupla constituição fenomênica e semiótica (carne e personagem), ocupam o espaço cênico como um enigma de presenças-presenças, superando o paradoxo binário por um olhar de perspectivas múltiplas. Os vazios ora se concretizam, ora são tempos mortos no bordado da cena.
O texto de Marcelo Bourscheid mantém ao fundo uma história sobre uma escritora, outra mulher com quem ela se envolve amorosamente, um pianista e um cachorro. Mas o faz também como enigma, num ordenamento subjetivo, subtraindo a possibilidade de compreensão do todo, e nublando o olhar do espectador.
Entre o lírico e o narrativo, os personagens partilham uma experiência aprisionada ao eu: “aquela manhã em que você percebe/ não há ninguém/ ninguém/ fora dessa carapaça que você chama de eu”, escreve o dramaturgo. A relação intracênica passa a ser impossível quando impossível é superar o eu, e manifesta-se como impasse sobre a outra relação, a extracênica, entre atores e espectadores, restrita também pelo que subjaz subjetivo.
Nessas vozes desencontradas no espaço, o que ganha potência então é a poeticidade de um eu lírico inesperado. Como o do cachorro, cuja expressão é invenção: “Duas cadelumana que se engronham num esfregossemfim. Seesfregum sesfregum depois sóssorriem queé o jeito cadelumano de terminar coisasdecoito ficar ali sódeabraços no banquinho luaolhando olhandalto olhandaqui no lodoçal quebrilha”.
A presença de um afeto desconhecido a inaugurar um sentimento de mundo.