::::Por Marcos Coletta::::
“A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso, é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas.”
João do Rio, em ‘A Alma encantadora das ruas’.
Michel Foucault denomina jogos de verdade a prática de operar discursos para que estes se tornem verdadeiros ou falsos, de acordo com as circunstâncias em que são ditos e os objetivos aos quais se pretendem. Foucault considera o discurso uma prática social coercitiva e dominadora, que vai além de sua natureza comunicativa. Para o filósofo, o poder que o discurso manipula não funciona como algo estático, absoluto, ou previamente dado, mas sob uma dinâmica de forças que constituem um verdadeiro jogo, assim, os próprios papéis de dominador e dominado são flutuantes. Considerando o discurso como um elemento do dispositivo foucaultiano, as relações de poder se dão no próprio movimento entre Poder e Saber, onde cada nova produção de conhecimento atualiza esta rede de relações. Um bom exemplo está na nossa história oficial, elaborada e canonizada pelos vencedores, pelos dominantes e reproduzida nos livros de todo o mundo. Mas, desde que a informação deixou de ser um privilégio e passamos a duvidar das verdades, entendemos que a história oficial da humanidade é apenas uma versão eleita entre tantas. Uma eleição que coloca nações, culturas, personalidades e fatos em posições e representações estratégicas.
Em “À tardinha no Ocidente”, novo espetáculo do grupo Primeira Campainha, realizado através do projeto Cine Horto Pé na Rua 2014, os jogos de verdade e de poder ganham materialização literal em cena. O espetáculo reconta parte da história oficial do Brasil sob uma ótica anarcolúdica, libertária, brincante e atrevida. O texto assinado pela atriz e dramaturga Marina Viana (que não por acaso é formada em História) com colaborações de toda a equipe[1] costura uma narrativa ao mesmo tempo leve e contundente. A partir de uma fábula simples, cinco crianças que não conseguem decidir qual brincadeira irão jogar juntas, o espetáculo propõe sua versão farsescontemporânea sobre diversos capítulos da nossa história. As personagens Mona (Monarquia), Tops (Utopia), Ana (Anarquia), Dita (Ditadura) e Rê (Republica) se moldam a partir das ideias políticas que as representam, sem, contudo, cairem no desgastado jogo polarizado e maniqueísta que marca, em muitos casos, o teatro político, pois se relacionam em um jogo de status oscilante, de dominação e subjugação transitórias. Como em Foucault, as relações de poder mudam a todo instante de maneira explícita e, assim, criam as contradições necessárias para formularmos análises mais complexas do que a simples separação entre o bem e o mal. Ao escolher personificar grandes ideias políticas em tipos infantis, a Primeira Campainha instaura um clima de inocência e de brincadeira que não só facilita o acesso da criança ao espetáculo, como também amacia e rejuvenesce, para os adultos, velhas discussões tão repetidas, afinal toda nossa disputa política, bélica, histórica, partidária, todas as guerras ideológicas não seriam, no fundo, um resquício dos nossos jogos mais infantis? (Lembro-me da cena do Grande Ditador de Chaplin brincando com o mundo como se fosse uma bola).
“À tardinha…” recorre de maneira criativa à espacialidade e aos recursos estilísticos clássicos do teatro de rua, inclusive na escolha de não microfonar os atores, e deposita na própria simbologia da rua o mote de sua encenação. A rua vista como espaço de jogo, de brincadeira, de infância e liberdade, mas também como palco de batalhas, de manifestações, de perseguições, de confrontos populares, de pronunciamentos políticos, de contradições e desigualdades, de perigos e inseguranças. Em um período atual marcado pelas eleições que se aproximam e ainda aquecido pelas manifestações ocorridas em junho de 2013 e na Copa de 2014, as atrizes-criadoras da Primeira Campainha não se esquivam de defender um discurso ideológico próprio alinhado ao pensamento de esquerda (ainda que com uma visão crítica) e colocam em questão alguns paradigmas importantes e ainda polêmicos como quando perguntam ao público, em sua maioria infantil, se duas mulheres podem se casar, ou quando Rê (a República) afirma que Deus não existe, sob o protesto de Mona (Monarquia) e Dita (Ditadura), mas a própria natureza de jogo e de brincadeira infantil instaurada pelo texto e pela cena não permite que tais momentos se tornem embaraçosos para o público. Os números musicais aparecem como solução envolvente para resumir narrativas e retrospectivas históricas, enquanto a simplicidade dos recursos de figurino e cenário, propositalmente improvisados, fortalece o universo da espontaneidade e do despojamento característicos da brincadeira. “À tardinha…” cria, tanto pela dramaturgia quanto pela encenação, duas camadas bastante distintas de fruição e envolvimento, uma para os pequenos e outra para os adultos. Na mediação destas duas camadas reside o grande trunfo do espetáculo, pois consegue inserir as crianças dentro do jogo e da fábula de maneira inofensiva (mas nada ingênua), criando imagens de forte impacto para os adultos que assistem de fora, como quando Dita (Ditadura) e o monstro DOI-CODI caçam as crianças em um ‘pique-cola ‘ aterrorizante, ou quando, nas cenas finais, duas crianças carregam os véus dos casamentos nada tradicionais realizados entre as personagens – uma brincadeira que casa Dita(dura) com Ana(rquia) e Mona(rquia) com Rê(pública), sob a benção de Tops (Utopia).
Com “À tardinha no Ocidente” a Primeira Campainha refresca a estética do teatro de rua e atualiza o potencial político e agregador deste espaço por onde transita tanto da nossa história. O grupo se lança na rua de maneira coerente com o trabalho que vinha desenvolvendo no palco, reassumindo e aprofundando um perfil estético bastante presente nos seus dois primeiros espetáculos, onde o humor irônico, o auto deboche e a dramaturgia veloz conectada a uma imensidão de referências batem no ritmo do caminhar contemporâneo.
[1] Em cena estão as atrizes originais da Primeira Campainha Marina Arthuzzi, Marina Viana e Mariana Blanco; as atrizes convidadas Denise Lopes e Dayane Lacerda; além do ator e diretor Byron O’neill. Juntos assinam a concepção e a direção do espetáculo.