Por Julia Guimarães :::
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que traduzir é trair. Embora se referisse especificamente à questão da língua, sua frase pode ser tomada por diversos ângulos para pensar sobre o espetáculo “Congresso Internacional do Medo”, que o grupo Espanca! (BH) apresentou na IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.
Com título tirado de um poema de Carlos Drummond de Andrade, a montagem logo de início já desperta estranhamento no público ao transpor para a encenação a estrutura de um congresso – com mesa, tradutora, tela de projeção e uma dose considerável de formalidade.
Em cena, quatro congressistas de diferentes países se alternam em suas falas. Tusgavo Tapbista pesquisa animais e se afina com o imaginário do europeu. Reluma Divarg estuda o medo nos contos de fada e veste uma espécie de burca que só deixa os olhos à mostra. Doutor José mora numa ilha flutuante e fala uma língua próxima ao português, porém, dotada de mais metáfora e poesia; Trumak é representante dos Ayritã, povo indígena que foi dizimado, restando ele e sua irmã Payá, também presente no congresso. Ambos falam português.
Não há mediadores. Apenas uma tradutora poliglota que traduz as falas dos palestrantes para o português. Nas extremidades do palco, um homem e uma mulher dançam durante todo o espetáculo, numa conversa paralela em língua própria.
Neste primeiro momento, a relação entre linguagem e alteridade aparece nas entrelinhas das palestras. De maneiras distintas, os palestrantes dão pistas sobre as formas como enxergam e sentem o mundo. Logo em suas primeiras falas, a tradutora já se coloca para refletir sobre como nem tudo no mundo é traduzível, sobre como as palavras cansam e muitas vezes ofuscam questões mais humanas e essenciais. Tal entendimento será reforçado no decorrer do espetáculo e sua crítica, em vários momentos, corre por aí.
Os personagens Reluma e Tusgavo operam numa chave mais racional. A brincadeira com recursos comuns a congressos, como gráficos, powerpoint, pausas pra beber água etc., reforçam essa dinâmica por demais formalizada de produção e transmissão de um conhecimento descolado das questões da vida. Hipóteses e teorizações sobre a morte surgem na discussão entre os dois. A arrogância de Tusgavo ao refutar as premissas de Reluma faz lembrar a perspectiva eurocêntrica de detenção da verdade.
Outros modos de sentir e interagir com o mundo se sobrepõem a esses. O índio Trumak explicita nossa desconexão com elementos naturais, como água, vento, enquanto a irmã fabula sobre as aparições do céu, do sol e, ironicamente, da hidrelétrica que se instalou na aldeia de seu povo. Embora ainda pautadas por referências bastante ocidentais (por exemplo, quando o índio fala sobre felicidade), é possível enxergar semelhanças entre o modo de ver o mundo dos irmãos Ayritã e a noção de ‘perspectivismo indígena’ formulada pelo antropólogo Viveiros de Castro. Grosso modo, sua teoria parte da premissa de que animais, espíritos e elementos da natureza seriam, para os índios, diferentes espécies de sujeitos que habitam o mundo e o enxergam sob distintos pontos de vista.
É também Trumak que chama o público para prestar atenção em si e no acontecimento presencial de convívio que partilhamos ali, ao pedir aos espectadores que sintam as batidas do coração. Já o Doutor José, embora sempre interrompido quando está prestes a iniciar sua palestra, é quem materializa em suas palavras essa relação entre linguagem e alteridade.
Seu português poético remete a uma percepção de mundo que passa pelo corpo e pelos afetos. Em frases como “dê calma aos pulmões”, traduzida por “respire profundamente” ou “os meus olhos estão piscando” (“eu não posso acreditar”), parece haver não só um modo singular de enxergar o que está à sua volta, como também um alerta para considerarmos mais os sinais do corpo no diálogo com o mundo.
Embora a problematização das alteridades seja forte na etapa inicial do espetáculo, o que ganha desdobramentos em um segundo momento são, de fato, as críticas a um conhecimento que se mostra pouco útil às relações humanas.
Escondida inicialmente sobre sucessivas camadas de pano, a gravidez da personagem Reluma interrompe a dinâmica das palestras e surpreende os demais presentes, que se juntam para fazer o parto da criança.
A partir daí, é como se as diferenças, a distância e as teorizações apresentadas anteriormente se mostrassem irrelevantes diante da potência concreta e metafórica do nascimento. Os presentes se juntam em torno do bebê e ali passam a se escutar, se entender. O mais transformado entre os personagens é Tusgavo. Principal responsável pelo parto, enxerga no acontecimento um recomeço, e relativiza a importância de seu estudo sobre os peixes. Algo semelhante ocorre com a tradutora, que, pela primeira vez, diz sentir orgulho do próprio conhecimento.
Embora potentes, as questões apresentadas pelo espetáculo esbarram ora na própria complexidade dos problemas discutidos, ora numa visão por demais dicotômica entre a dimensão distanciadora do conhecimento e a grandeza intraduzível da vida. Ainda que se trate de uma crítica cada vez mais visível no pensamento dissidente atual, ela exige nuances.
Em seu livro “Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir”, Hans Ulrich Gumbrecht alerta que sempre seremos confrontados com essa tensão ou oscilação entre presença e sentido. Para o autor, é muito importante não tomar essa valorização da presença defendida por ele como abdicação ingênua da cultura de sentidos em que vivemos ou renúncia aos conceitos e à compreensão.
E é justamente ao colocar afetos/presença e conhecimento como polos antagônicos que o espetáculo empobrece suas ideias, ao traçar tão marcadamente uma forma de ver o mundo em oposição à outra, e não em tensão, negociação etc. Ou ao considerar que toda tradução – entendida aqui de forma mais ampla – resultaria numa negativa traição.
O recurso dramatúrgico de usar elementos como o nascimento e a morte em cena também colabora para essa simplificação, ao reconectar os personagens através de um elemento externo, e não a partir das relações previamente estabelecidas. Como se apenas essas situações extraordinárias, quase milagrosas, fossem capaz de aproximar pessoas e atentar para o que importa na vida.
Por outro lado, o espetáculo parece escapar desses lugares justamente quando cria imagens de estranhamento ao público. É o caso não só da primeira parte da montagem, como também da presença constante dos bailarinos em cena e de um filtro por onde sai um líquido vermelho, tingindo o chão branco do cenário. Ainda que seja possível enxergar a dança como mais um elemento de reforço sobre a limitação das palavras, ela é também uma alteridade plantada sobre a própria linguagem teatral, que permite a cada espectador encontrar um sentido próprio ali.
E embora, em seu início, o espetáculo dê outras pistas para a reflexão sobre o medo, a faceta desse pensamento que aparece com maior evidência é metafísica, relacionada à morte e ao desconhecido. Evidências de uma cultura que não foi preparada para lidar com aquilo que não se explica. No entanto, diante do paradoxo da intraduzibilidade, há de se questionar se não seria possível simultaneamente teorizar, conhecer, explicar, e, por que não, também dançar.
.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Valmir Santos, do Teatrojornal, aqui.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
Ei Júlia!
Enquanto estava nos primeiros parágrafos do seu texto, pensando sobre a questão da dicotomia dos modos de relacionar com o mundo, me veio fortemente a discussão do Gumbrecht sobre cultura de presença e cultura de sentido. Achei muito legal encontrar a referência à produção de presença já depois da metade do texto. Fiquei pensando se seu último parágrafo não aponta justamente para o que Gumbrecht propõe naquele livro: a ideia de que há dimensões da nossa existência e experiência que não precisamos da hermenêutica para… como dizer, produzir sentido. mas aquilo que Gumbrecht fala como “aquilo que o sentido não consegue transmitir”. aliás, acho que o livro dele nos convida a pensar se não existe uma dimensão em que poderíamos “refrain from” interpretação, teorização, e apenas deixar que as coisas sejam o que são e nos toquem o corpo, que nos provoquem epifanias (ou Stimmung), como ele reformulou uma vez: um lugar (um espaço ou tempo) apenas “to be quiet for a moment”. Gelassenheit 😉
Adorei seu texto!
Ei Mariana!
Muito bom ler seu comentário, acho que a discussão do espetáculo em diálogo com as ideias de Gumbrecht renderia um texto à parte, tantas são as janelas possíveis nesse diálogo. Se não isso, pelo menos uma boa conversa 🙂
beijos
Ei Mariana, não seria …”há dimensões da nossa existência e experiência que não precisamos da hermenêutica para…” produzir efeito? beijo.