por Luciana Romagnolli*
“Tema de Amor para Curitiba”. Foto de Lidia Sanae Ueta. |
“Tema de Amor para Curitiba” reconhe as várias cidades que há em uma e os vários teatros contidos numa cidade, e opera uma conciliação de parte dessas diferenças. O palco é tomado como esse espaço de comunhão, armado em torno de uma mesa onde se partilha a comida e o vinho, numa imagem que evoca a Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, e na qual os apóstolos são figuras icônicas do teatro curitibano, como Fátima Ortiz, Nena Inoue, Regina Vogue e César Almeida, sentados ao lado do Elenco de Ouro, num encontro inesperado de vertentes de pensamento e prática teatral que outrora pareceriam inconciliáveis num palco ou nos bastidores.
A força dessa imagem reside na harmonia estabelecida, em contraste com um imaginário de indisposições e boicotes que permearia as relações entre artistas locais, como já foi criticado no espetáculo “Árvores Abatidas”, mas também transparece na inarticulação frequente entre grupos, da qual a Mostra Cena Breve e a nuvem de artistas envolvidos no Elenco de Ouro, na Selvática e no Heliogábulus – que, não à toa, respondem por quatro cenas desta edição – são exceções.
Com tal disposição a aproximar alteridades, a cena promove momentos emblemáticos pelo modo como opera com os papéis reais que tais artistas desempenham no jogo de representações “extraficional” do cotidiano. Como uma provocação irônica, o Elenco de Ouro responde à intolerância e à fixidez das relações nas outras instâncias da sociedade. Dentro de um espaço por excelência de ficcionalização, mas que se apresenta esvaziado dessa sua natureza, como é o palco, resolvem-se impasses vigentes na vida “real”. Artistas de posturas tão diferentes quanto Ricardo Nolasco e Fátima Ortiz dançam juntos e César Almeida enfim recebe um almejado troféu Gralha Azul.
Mais além desse encontro das diferenças restritas a um segmento tão específico quanto o teatro instituído na cidade, o coletivo opera um confronto entre as forças da dita alta cultura, porque legitimada em espaços como mostras e edifícios teatrais, e a dita baixa cultura, afastada das atenções da crítica e da academia. A entrada de b-boys, com rigor físico e energia incomparáveis, desestabiliza as noções de arte superior ou inferior, ao mesmo tempo em que o fato de se apresentarem em um palco lhes confere a legitimidade negada na rua. Contudo, é sintomático que os dançarinos não se sentem à mesa com os demais – a relação com eles ainda não é de comunhão, são os “outros”.
A cena, portanto, se ancora em uma série de pressupostos sobre as identidades e relações em jogo no teatro curitibano, que dependem de um conhecimento prévio do espectador para efetivarem seus sentidos. Com isso, o encontro com o público se restringe. Assume-se o espectador iniciado como interlocutor, em prejuízo do leigo. Na fala do diretor Cléber Braga durante o bate-papo realizado hoje de manhã, a justificativa para essa escolha se insinua quando ele constata que teatro costuma ter pouco público. Difícil discordar. Mas é de se pensar se essa não é razão para não renunciar a uma comunicação mais ampla – não simplificando a obra, mas multiplicando suas camadas e explicitando mais, na cena, o que há de pressuposto.
“Tema de Amor para Curitiba” se aproxima dessa amplitude quando mira questões sociopoliticas da cidade, com uma clareza de intenções traduzida no manifesto de Ricardo Nolasco e Nena Inoue ao miocrofone, elencando as nódoas do tecido urbano. O prólogo da cena também se inscreve nessa crítica como uma construção metaforizada, em que a imagem paradisíaca comercializada e publicizada é exposta em sua ingenuidade.
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Atado ao mundo infantil
“Esboço para My Adult World”. Foto de Lidia Sanae Ueda. |
“Esboço para My Adult World” constrói a fábula de um solitário, marcada pelo quanto a experiência da infância determina a vida adulta. O personagem desse solo é um homem neutralizado pelos ecos da criança que um dia foi, mas que parece não ter se dissolvido ao passar dos anos. O trânsito para essa “idade em que a lei lhe concede completa capacidade para os atos da vida civil” (para ficar na definição dicionarizada) é penoso na medida em que implica perdas, responsabilidades, carências e desilusões.
O ator Alexandre D’Angelli materializa esse estranhamento diante das demandas adultas usando como recurso a animação de um boneco de papel, cujas dimensões reduzidas contrastam com a amplidão do espaço cênica delineado, por mais que este tenha limites estreitos também. A cena se faz de elementos visuais que evocam a infância nos tamanhos, materiais, traços e cores, impondo uma atmosfera lúdica tensionada à tristeza apática do registro de atuação, que não se infantiliza. O que há em comum é uma qualidade de fragilidade e inconsistência.
O texto reescrito por D’Angelli com base num conto de David Foster Wallace também concretiza esse desconforto com o papel social esperado do adulto por meio da narrativa dos percalços de se morar sozinho, acentuando detalhes que sintetizam os afetos envolvidos. D’Angelli assume essa função de narrador e manipulador do boneco com uma capacidade de interiorização intensificadora do mal-estar do personagem. A emissão de voz baixa, contudo, pode limitar a audição do público.
Essa é uma questão maior: como aproximar o espectador desse universo delicado, de uma fragilidade construída, para que suas forças não se percam na distante configuração de um palco italiano? Outra indagação que cabe ao intérprete, diretor e dramaturgo, é como criar também um jogo entre a interiorização e uma exteriorização que atinja o público.
O desejo de transgressão
“Monstre Julia”. Foto de Lidia Sanae Ueta. |
Como pensar uma criação artística que se concebe como um processo de muitas etapas com base somente no evento de uma cena breve? Por outro lado, como escapar dos limites desse evento, se é a ele apenas que o público tem acesso no momento? É necessária uma cena que se baste, com independência, ou vale a visão de um fragmento deslocado do todo no qual seus sentidos se realizam? São indagações despertadas por “Monstre Julia”, do Grupo de Investigação Cênica Heliogabalus.
O trabalho nasce das inquietações pessoais de Semy Monastier. E talvez aí esteja, ainda, o limite de seu alcance. No debate desta manhã, a atriz/performer disse que o principal encontro que se dá em cena é seu com Julia, a personagem de August Strindberg para a qual a artista imagina um desfecho sem suicídio e transportado para o mundo contemporâneo. A relação intraficcional entre atriz e personagem, portanto, está delineada, mas em nenhum momento é explicitada para quem senta na plateia. Falta maior atenção ao eixo extraficcional, ou seja, como isso é comunicado ao público.
O que chega – ao menos pela minha experiência de expectação – é a intenção transgressora associada ao rock, ao figurino que expõe a seminudez da atriz e ao discurso que enfrenta o pai e celebra o embriagar-se. Mais intenção do que transgressão real, uma vez que a zona de conforto dos performes e dos espectadores não é ameaçada. Ou, quando é, com a revelação involuntária do seio da atriz, rapidamente se apazigua num gesto de cobrir o corpo, consciente ou não.
Pois é justamente esse corpo, envolvido em tecido transparente e sob efeito da luz, que forja imagens e instaura uma sinestesia que preenchem a cena e afetam o espectador. Ajustar as energias corporais e tecnológicas empregadas, considerando a experiência de recepção, pode ser importante para que a cena ultrapasse o desejo individual da atriz e encontre ressonância no público.
O eu esmagado pelos outros
“Reunião de Condomínio”. Foto de Lidia Sanae Ueta. |
Em “Reunião de Condomínio”, o pensamento existencialista de Jean-Paul Sartre (1905-1980) guia a Súbita Companhia de Teatro em sua abordagem para o conto de Marina Colasanti sobre um morador que vai à reunião de condôminos fantasiado, e se vê diante do poder paralisante das divergências de opiniões que não entram em acordo. Como terceiro ponto de sustentação, a cena se equilibra na relação entre a presença física da atriz e a virtualidade dos personagens com quem contracena, pré-gravados em vídeo. Com isso, fica estabelecido o confronto do eu com o outro, problematizado na teoria sartreana, transposto para um contexto do cotidiano de classe média e mediado pela diferença de linguagens empregadas em cena.
O eu – representado pela atriz Janaina Matter – se apresenta carnal, palpável, presente. Uma mulher cujas inquietações de uma noite de tédio a levam a romper o protocolo da reunião de condomínio vestindo traje carnavalesco. Seu discurso é carregado das frases-sínteses do existencialismo – entre as quais, “o inferno são os outros” e “estamos condenados à liberdade”. Seu figurino, ousado nas unhas agressivas e nas misturas de texturas dos tecidos. A potência à qual alude é de uma transgressora.
Contudo, a junção das palavras à imagem que ela assume não constitui uma individualidade consciente de que efeito quer exercer sobre o microcosmo que enfrenta. Se a liberdade está em escolher, a pergunta a ser feita à personagem é qual escolha ela faz? Como pretende exercer a sua liberdade? Até para que esbarre no limite imposto pelos outros, com suas respectivas e distintas escolhas, antes seria desejável a afirmação desse eu. Pensar mais detidamente sobre essas questões e seus desdobramentos na fábula escolhida pode dar outra profundidade à cena, além da superfície das ideias.
Pois vamos aos outros. Trazidos ao palco em vídeo e, como observado pela debatedora Lucienne Guedes, maiores que a personagem e posicionados acima dela no espaço cênico, eles esmagam a presença da atriz, desfavorecida também pela luz insuficiente sobre si. Essa relação desmedida, se intensificada, pode ter seus sentidos incorporados à criação, reiterando o peso dos outros sobre o eu. Na cena, o que se vê é uma interação rica em detalhes e rigorosa nos tempos, mas na qual a afetação entre as partes é enfraquecida. A certa altura, no meio da cena, o vídeo toma o protagonismo e a personagem pouco reage, relegada à condição de espectadora também. Pela natureza do registro audiovisual pré-gravado tal como apresentado, o universo dos outros se torna evidentemente impermeável. O atrito entre individualidades se dilui num aparente determinismo pessimista de que não há possibilidade real de afetação.