Narrar o mundo – Escavar histórias (3º dia)
– por Guilherme Diniz-
Foto de Guto Muniz
A terceira noite do Festival de Cenas Curtas apresenta, inicialmente, um traço geral que a diferencia da segunda noite, isto é: a palavra como sustentáculo da construção cênica. Em todos os trabalhos, as palavras proferidas em um contexto narrativo, ou revisitadas em chave cômica, se converteram em instrumentos a partir dos quais os sujeitos investigam o cotidiano, as convenções sociais, as precariedades da vida. Há um desejo de escavar ou desenterrar narrativas para dalgum modo redimensionar nossas relações com o mundo e suas diversas modalidades de violência. Se na segunda noite apenas a última cena – Eu Só, Com Verso (BH/MG) – se alicerçava nas malhas líricas da palavra, nesta última noite todas as cenas com seus atuantes/personagens atacaram os distintos modos de opressão (classe, raça e gênero) por intermédio do verbo, em sua dimensão testemunhal, evocativa e irônica. A pluralidade de configurações espetaculares, contudo, não se empalidece diante das semelhanças, pois as quatro cenas da noite trilharam caminhos poético-políticos singulares, conduzindo o público a diferentes e, por vezes, opostas atmosferas.
As apresentações se iniciam com Menino Amarelo do Buchão, de Fortaleza. O monólogo elaborado por Francisco Thiago Cavalcanti nos transposta para as agruras, carências e sonhos de um pobre menino no Ceará da década de 1960. A narração desenha um retrato social que expõe as mazelas e profundas desigualdades, vivenciadas, sistematicamente por uma população alijada de qualquer forma de cidadania. A precariedade da vida, bem como suas misérias fatiam existências gravemente devoradas pela fome, pelo abandono e pela dificuldade de construir alternativas. Francisco conta, em um palco praticamente vazio, não apenas as vivências de Amarelinho, mas a história de um nordeste tanto mais desconhecido, quanto mais atravessado por penúrias.
A estrutura narrativa possui um caráter testemunhal, como se o próprio contador conhecesse de perto as desventuras do menino. O relato se desenvolve em um tom abertamente casual, bastante informal no modo de se dirigir diretamente ao público, (embora seu registro vocal seja geralmente invariável) pois o que se busca é a construção de uma conversa despojada, na qual ambas as partes – ator e público – se aproximem o máximo possível. Essa proximidade é visível nos momentos em que um espectador interpela o ator. Houve ali uma identificação para com a história contada? Aquele espectador fora realmente mobilizado? Como essa reação afeta (ou não) a performance do ator? Auxiliado por um microfone, Franciso Thiago narra a odisseia de Amarelinho do buchão (assim apelidado devido às verminoses na barriga) que aos oito anos de idade vê em uma arma de brinquedo, a possibilidade de romper todas as violências que o circundam – a aguda pobreza, a indiferença por parte da mãe e a fome desumanizante. O armamento de brinquedo, fantasiado pelo seu olhar ferido e pueril é a chance de construir e possuir um outro mundo para si. A narrativa de Francisco soa como uma fábula, em que todos os acontecimentos e atos da personagem principal se encadeiam linearmente, passando por coincidências e infortúnios, até o seu desfecho um tanto previsível.
No derradeiro momento, Francisco Thiago entoa a canção “Acende o Crepúsculo”, partindo de um registro melancólico até alcançar o ápice de ruídos vocais que mais se assemelham a um pranto ou gemido doloroso. Ele tinge seu rosto de amarelo, e nesse momento o menino Amarelinho, meramente evocado pela narrativa, se materializa na tinta sobre a face do ator. O copo de água colocado no chão à alguma distância do narrador, no início da cena, é agora desejado por um Francisco que rasteja, aos berros, em sua direção. O copo de água como antítese da seca? Ele tem sede do que?
As imagens utilizadas por Francisco para forjar sua narrativa já povoam nosso imaginário sobre as carências de um nordeste. Os tantos Retirantes e seus vários êxodos, pintados por um Portinari, ou os Severinos e cães sem pluma poetizados por João Cabral de Melo Neto já são referências e imagéticas comuns ao evocarmos o nordeste. A narrativa de Francisco reforça um lugar-comum – a seca, a carestia, as violências – que, evidentemente, ainda é presente e significativo. Mas penso que sua história eventualmente nos emociona sem, contudo, nos deslocar, nos desafiar ou puxar o tapete de nossas expectativas. Ao cabo, a criança é presa e assistimos a mais uma cotidiana tragédia social.
Seguimos para a segunda cena, A Cobradora, de São Paulo, também esta um monólogo. A princípio, uma figura, parcamente iluminada por um único foco, em meio à escuridão, está densamente coberta por inumeráveis peças de roupa e tecidos que se amontoam sobre aquele corpo, que angustiosamente geme. A disposição dos tecidos remete à forma de uma burca. Desesperadamente, ela tenta se livrar de cada peça, cada tecido, como se eles a asfixiassem, sufocando de alguma forma sua liberdade. A ação é intensa e aflitiva até cessar. A mulher que vai discursar é Eva; a pecadora-mor, símbolo, por excelência da corrupção que macula o bem-estar edênico, segundo a consagrada tradição bíblica. Eva é, portanto, a antítese daquele ser esculpido à imagem e semelhança de Deus. O monólogo de Maria Alencar coloca-nos diante de um dos mais emblemáticos arquétipos ocidentais que representa exemplarmente, segundo esta narrativa, a traição, a negação da graça e da harmonia divina. Para aquela mulher não há perdão que dê conta de livrá-la de sua pecaminosa marca que, historicamente, se converteu em um estigma aprisionador. Portanto, a cena lança mão de tal figura mitológica para discutir a condição das mulheres, as violências que atravessam seus corpos e, não raramente, definem suas existências.
Curiosamente, a imagem e a problemática levantadas pela cena A Cobradora já foram, há alguns anos, material para a criação do espetáculo “E se Eva Não Tivesse Dentes?”, da belorizontina Cia. Mulheres Míticas. Em um momento a dramaturgia dessa peça diz:
“Quando eu era criança e me contaram a história do pecado original, fiquei muito intrigada, pensando em como seria se Eva, assim como eu naquela época, estivesse banguela. Seria Adão a morder maçã. E PAH: A história da humanidade salva por uma janelinha!”
Ao investigar tais mitos fundadores, que associam as mulheres à causa de grandes malefícios, como Eva ou Pandora, Maria Alencar almeja colocar em questão discursos, racionalidades e narrativas que não apenas subalternizam mulheres, mas as violentam física e simbolicamente. Se Eva não tivesse dentes, quem seria o bode expiatório do mau? Certamente teríamos de inventá-lo.
A Eva, encarnada por Maria Alencar, debate com Adão a expulsão do paraíso e as descobertas que só poderiam ser realizadas fora daquele celestial lugar, como a mentira, a dor e o sofrimento. Parece haver um paradoxo, pois ela reclama do comportamento violento de Adão, mas ao mesmo tempo afirma que o sofrimento e a dor são belos. Quais dores e sofrimentos são belos, então? Os discursos vão se alterando à medida que a atriz retira alguma peça de roupa, revelando outro figurino por debaixo. O que se vê são várias Evas contemporâneas, urbanas, brasileiras, etc que narram suas histórias e contestam um estado de coisas patriarcal e letal. Maria Alencar vai aparentemente evocando outras mulheres, mas o desenho ou o contorno de cada uma delas é confuso. Em um momento já não se sabe se é Eva ou uma cobradora quem fala. Elas se aproximam, mas são idênticas? O que as diferencia? Quem é essa cobradora, afinal?
Já a terceira cena da noite é, em tom, aquela que mais destoa, indubitavelmente. Imbróglia, do Rio de Janeiro, nos provoca fartas gargalhadas ao questionar, pela via cômica, nossas concepções (e preconcepções) sobre as mulheres, em um mundo regido também pelo machismo. A nós homens, especialmente, a cena dirige ironias mordazes, desestabilizando as certezas (tão frágeis) que estruturam as relações de gênero. As três palhaças – Amnésia, Pastilha e Paulalaura – elaboram saborosos jogos de palavras e situações cômicas para certamente desnaturalizar estereótipos e imaginários sociais que ainda insistem em reduzir a complexa humanidade das mulheres. Nesse movimento, ironizar as palavras e parodiar os comportamentos sociais são as irreverentes estratégias, construídas por este trabalho, cuja ação nos coloca diante de um cotidiano, a um só tempo, violento e risível.
A interação entre as três palhaças é harmoniosamente dinâmica, não deixando com que nenhuma domine individualmente a cena. É o trio que se desdobra em situações diversas, seja cantando, seja interpelando o público, a atuar como um todo coeso e ágil, transformando rapidamente um acontecimento em outra coisa distinta.
Em um determinado momento, uma das personagens nos interroga: “imagina se os homens menstruassem?” A partir dessa questão, é simplesmente impagável as caricaturas do comportamento social masculino. O trio clownesco expõe com precisão o ridículo destas performatividades masculinas; convenções sociais e códigos que se apoiam em uma exacerbada e rude competividade. O que se vê em cena são as máscaras comportamentais tão cotidianas, tão próximas e identificáveis, sendo impossível não reconhecê-las. A atuação das atrizes, nestes instantes, adota recursos bufonescos para deformar, em tons carregadíssimos, trejeitos socialmente masculinos. Se nós homens menstruássemos um mundo todo se reorganizaria a partir destas necessidades – o que indica, nitidamente, como as dimensões fisiológicas e políticas são intimamente ligadas, em uma sociedade organizada por violentas desigualdades de gênero.
Adiante, duas palhaças, reproduzindo práticas comportamentais masculinas, disputam o carinho e o corpo da terceira. Contudo, saborosamente a dinâmica competitiva se desfaz, e as três personagens vão se divertindo eroticamente, recusando um modelo de relação dominante, normativa e hierárquica para assumir uma plena comunhão do prazer e do afeto. Elas terminam adormecidas, cobertas por um tecido vermelho que se soma ao vistoso figurino da mesma cor. E aí, as sábias palavras de Vilma Areas sobre alguns dos princípios da comédia se manifestam: houve não somente a contestação de um princípio de autoridade, que perturbava a harmonia, mas também uma merecida reconciliação final.
Assim como em A Cobradora, Imbróglia também se debruça sobre as relações de gênero e as condições sociais das mulheres. Em tempos nos quais o feminicídio racista sobre mulheres negras só aumenta, como articular cenicamente as diferenças e as desigualdades entre as mulheres? Se é difícil definir traços universais que abarquem completamente todas as mulheres, como as cenas podem apontar para estas dessemelhanças que estruturam outras dinâmicas de subalternidade e opressão?
A quarta e última cena – Pietá, de Belo Horizonte – aborda as violentas dimensões psicofísicas do racismo, na experiência social de cinco jovens negros, cada qual marcado pelos traumas de uma opressão que não apenas reduz a existência, como destrói a humanidade afetiva de corpos preenchidos de vida. O cotidiano racista discutido pela cena é encarado por meio do olhar de uma juventude, que apesar de tudo, afronta com ironia as barreiras de um mundo violentamente racista. Estes “corpos que existem menos”, como diz um dos atores, ou “corpos de ausência”, como nos conta Nilma Lino Gomes, desafiam tais estruturas de opressão e nos convidam a uma reflexão urgente, ao agredir certas comodidades.
A cena se inicia na mais profunda escuridão e nela ouvimos as diárias táticas de sobrevivência que nós negros temos de adotar para sobrevivermos precariamente no mundo dos brancos (de vocês brancos que leem esta crítica), tais como: “não saia sem documento; não use o capuz, não corra, não coloque as mãos nos bolsos, não faça movimentos bruscos, etc” Ou seja, há uma necessidade em cercear a própria liberdade do corpo para tentar chegar ao fim de um dia sem sofrer demasiadas agressões racistas; o racismo como um mecanismo social que tolhe os movimentos, nos tornando facilmente estranhos aos nossos próprios corpos, como se esta violência racial não nos permitisse habitar plenamente nossos corpos.
Os cinco atores entram, trazendo consigo alguns cubos de madeira, onde irão se sentar. Como um todo, a cena se articula em cima de um jogo, similar à dinâmica da dança das cadeiras. Um ator, em pé, diz: “Eu quero alguém que já sentiu vergonha do próprio cabelo”. Aquele ou aquela que se identifica com a frase se levanta e o assento vago é disputado entre os demais. O jogo apresenta um desenho cênico perspicaz, pois cruelmente uma pessoa sempre ficará excluída, sem se sentar; além do mais permite aos atores mencionar diversos fatos, sentimentos e experiências geralmente comuns a jovens negros, vítimas de tais violências. Em seu desenvolvimento, o jogo se acelera e intensifica a urgência e a dor de narrar vivências tão indignas. Contudo, em diversos momentos a vitalidade do jogo não se manifestava, visto que os atores, ansiosos, não entravam inteiramente na atmosfera lúdica, as vezes adiantando o movimento, sem viver a pura tensão deste jogo.
O chiaroscuro – jogo e alternância entre luz e escuridão – tanto na iluminação cênica, quanto nas metáforas utilizadas pelos atores diz de um mundo ainda organizado por tensões e oposições bem demarcadas, em uma conjuntura altamente racializada/racista. Um dos jovens diz, em meio ao breu: “Nós nascemos do escuro”, narrando uma espécie de Gênesis alternativa; a criação de um outro universo, no qual Deus é uma mulher negra. A alusão a motivos e elementos bíblicos organiza uma das imagens centrais do experimento cênico: a renascentista Pietá, de Michelangelo. Na cena, porém, o corpo amparado por Nossa Senhora não é masculino, mas feminino. A metáfora, proposta pela ressignificação da iconografia cristã, apresenta questões. Por um lado, esta Pietá negra simboliza de modo agudo o drama e o trauma de inúmeras mães negras que carregam nos braços os corpos de seus filhos dizimados por uma violência sistemática – é preciso lembrar que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil? Por outro lado, penso: Será que a imagem cristã não reforça a ideia de um corpo negro sacrificial? Jesus morto, amparado por sua mãe, não apenas estava predestinado a morrer, mas o aceita em prol da coletividade. Estamos fadados à morte?
O tom grave da cena percorre se debruça sobre um cotidiano e contemporâneo real que se afirma como persistente e perseguidor destes corpos. Seja nas músicas, seja nos elementos cênicos utilizados (como as roupas molhadas estendidas no chão), há sempre uma referência direta à realidade atual. Um teatro, enfim, que não se quer neutro, mas esteticamente armado nas trincheiras da linguagem.
Caleidoscópios corporais (5º dia)
– por Guilherme Diniz-
Foto de Glenio Campregher
A quinta noite do Festival de Cenas Curtas articula uma significativa aproximação entre quatro cenas que, distintamente, enfocam problemáticas que atravessam as condições sociais e culturais das mulheres, em sua ampla diversidade. Nesse sentido, os discursos poético-políticos operados, cenicamente, evidenciam as complexas e tensas especificidades raciais, afetivo-sexuais, sociais que pluralizam a experiência de mundo das mulheres. Na crítica referente à terceira noite, questionei: “Se é difícil definir traços universais que abarquem completamente todas as mulheres, como as cenas podem apontar para as diferenças e as desigualdades entre as mulheres?” As cenas da última noite avançam nessa direção, ao explicitar e apresentar uma multiplicidade de corpos femininos que invalidam uma leitura universalista ou essencialista ávida por estabelecer um rígido denominador comum para definir o “ser mulher”. Embora as semelhanças sejam reais e possíveis, elas não podem homogeneizar e consequentemente invisibilizar as particularidades. Ademais, em sua maioria, as cenas apresentadas se estruturaram a partir de uma configuração na qual o corpo, em qualidade performática, se projetou como disparador de sentidos e discursos, reverberados por fisicalidades, traumas e memórias.
As apresentações se iniciam com Nagô, de Belo Horizonte, cuja textualidade espetacular aborda a inventividade ancestral das tranças; elemento cultural africano, recriado e ressignificado nas diáporas negras, como uma linguagem estética que refaz pertencimentos histórico-identitários afro-brasileiros. Em suas formas, as tranças nagôs construíram, historicamente, desenhos, linhas e plasticidades comunicativas e estratégicas, servindo como cartografias e códigos internos, apenas decodificados pelas comunidades negras.
A cena se inicia com uma projeção a nos mostrar trançadeiras discorrendo sobre seus próprios trabalhos; mulheres negras em ação, refletindo acerca da importância e da significação cultural de seus ofícios na manutenção e na reatualização de um saber cultural fundamental para a construção coletiva de identidades negras. A projeção é acompanhada por uma narração que expõe a complexidade das tranças, como um elemento visual e formal profundamente tecnológico, pois constrói motivos e caminhos estéticos que escapam a semióticas/sentidos acachapantes. Concordo com a sabedoria de Nilma Lino Gomes, quando esta afirma que os cabelos negros são suportes simbólicos das identidades negras no Brasil, enfrentam padrões imagéticos e atuam como signos de pertencimento étnico-racial. A perspectiva de Nagô parece ser essa, porque evidencia a expressividade das tranças, como uma invenção fundamentalmente coletivizada e compartilhada.
A princípio, Zaika dos Santos está sentada, cercada por um longo tecido alaranjado suavemente brilhante. A sua postura é altiva e majestosa, por assim dizer. A imagem se adensa pelas longas tranças da performer, que se estendem até o chão. Num dado momento, três mulheres e uma criança negras aproximam-se dela e cuidam, carinhosamente de seu cabelo. Ali, a ação é de imensa delicadeza, de autocuidado como uma prática fundamental a nossos corpos negros, feridos e desumanizados pelo racismo. Além disso, vemos mulheres negras partilhando cuidados entre si; o ato de tocar nas tranças – estas tão estigmatizadas pelo imaginário racista – com suavidade exprime um outro modo de relação, de aprendizado e circulação dos afetos. O paradoxo é brutal, pois em outra passagem, a projeção exibe as cotidianas e violentas perguntas acerca das tranças, a saber: “Como você faz para lavar isso?”. Um olhar invasivamente orientado pelo estereótipo. Novamente, as palavras de Nilma Lino Gomes nos ensinam, ao dizer que os cabelos negros no Brasil expressam as tensões e os conflitos raciais.
Zaika então começa girar suas compridas tranças, conduzindo-as a realizarem volteios no ar, acompanhando também as eventuais rotações da performer. Zaika se enreda nas próprias tranças que formam redes/teias ao redor de seu corpo. É como se ela se deliciasse com a beleza de seu cabelo; por vezes um sorriso é esboçado, revelando um prazer em habitar o seu corpo, em todas as suas extensões. Ao mesmo tempo, a movimentação das tranças sugere uma espécie de ataque, de revide a uma enxurrada de comentários racistas. Porém, a execução dessa partitura parece revelar algumas fragilidades, pois constantemente os movimentos propostos por ela não se desenham fluidamente, sendo eles um tanto truncados.
Já nas parcelas finais da cena, Zaika se ornamenta com algumas peças de roupa, dispostas no cenário, sobre o tecido ao seu redor. Logo, as três mulheres e a criança voltam ao palco cada qual, assim como Zaika, tem nas mãos uma coroa. Assim que se posicionam de maneira bem frontal, a encarar o público, elas coroam a si mesmas, formando uma imagem final de profunda beleza e insubmissão.
Por fim, a perspectiva afrofuturista da cena, ao encarar as tranças como tecnologia e invenção, marcada por intrincados princípios matemáticos, desenvolve aquilo que alguns dos mais destacados pesadores do afrofuturismo, como Alondra Nelson e Kodwo Eshun pensam: a construção de contra-memórias que problematizam as noções coloniais de história, cronologia e tempo. A presença de mulheres e uma criança negras de distintas gerações confirma perspicazmente isso: tais saberes ancestrais, como o ofício das trançadeiras não apenas perduram, mas se reinventam no devir temporal.
A segunda cena da noite – Eu Não Sei Você, Mas Eu Sou Sapatão, também de Belo Horizonte discute os dramas e as delícias da vida de mulheres lésbicas. As três jovens em cena apresentam, incialmente, em chave cômica, um universo afetivo marcado por códigos, expressões, apelidos e trejeitos saborosamente divertidos e carinhosos, que não apenas caracterizam uma comunidade lésbica, mas criam um sentimento de pertença, de território comum, no qual tais mulheres se reconhecem.
Já de início, uma irreverente repórter noticia algo: uma fila enorme de caminhões se forma ao longo da BR 040 e nesse tumultuoso contexto, mulheres com as unhas bem cortadas botam logo as aranhas para brigarem entre si. Adiante, a repórter, de modo hilário, descreve as características psicofísicas das duas outras atrizes; uma descrição que percorre as mais cômicas e ambíguas expressões, bem como inusitados jogos de palavra: tais como: caminhoneira, sapata, sapa, brejeira, etc. É interessante notar como as próprias comunidades operam maiores ou menores subversões na própria linguagem, retorcem-na para demarcarem suas existências; as piadas, apelidos e códigos internos forjam termos e vocábulos que vão se incrustando no linguajar cotidiano, interferindo e delineando uma cultura lésbica. Por mais que em alguns momentos, a cena performe alguns comportamentos mais estereotipados, acerca do que geralmente se pensa sobre mulheres lésbicas, existe a perspectiva de uma coletividade que partilha carinhosamente vivências e afetos.
Na lateral direita superior, há uma mesa de bar e três cadeiras. O ambiente despojado é a plataforma, por excelência, de compartilhamento de memórias e experiências, regadas por cerveja e lágrimas apaixonadas. As três atrizes relatam e discutem ali os amores, os encontros, os encantos que pluralizam existências marcadas tanto pelo medo social, quanto pela felicidade. Ao relembrarem as vivências amorosas, as jovens revelam divertidamente suas delicadezas emocionais. Os flertes, os temores e as pequenas decepções vão matizando histórias de vida que muito se aproximam. Na mesa de bar, uma das atrizes cria uma narrativa lendária que, remontando até a mítica ilha de Lesbos, constrói uma linhagem histórico-poética da lesbianidade (e dos anéis de coquinhos). A criação, mesmo debochada e espontânea de uma narrativa fundadora, é sintomática, pois são precisamente mitos e visões de mundo direta ou indiretamente em comum que materializam as chamadas “comunidades imaginadas”.
Após isso, as atrizes, com um de seus calçados à mão entoam um misto de convocação e canção de guerra, a congregar ficcionalmente todas as mulheres lésbicas, em um ritmo, cujas batidas muito se assemelham as dinâmicas musicais do funk. É como se estivessem a bradar: Lésbicas do mundo, uni-vos. A partir daí, o tom cômico gradualmente evanesce, dando lugar a uma atmosfera cada vez mais grave, no qual o depoimento visceral de uma das atrizes, atesta a violência massacrante da lesbofobia. Quando ela diz: “virei estatística”, a sistematicidade da opressão é exposta, a partir da qual a multifacetada humanidade daquele sujeito se torna número a alimentar uma roda de exclusão e letalidade. Nos derradeiros momentos, sob uma delicada luz arroxeada, é dito: “só a arte me interessa”. Em meio à um turbilhão de tensões e agressões machistas e homofóbicas, a arte, em sua dimensão poética e construtora de mundos possíveis, se converte em uma plataforma de enfrentamento e expansão estética de si.
Lentes de Contato, de São João del Rei, foi é a terceira cena da noite. O monólogo de Suzana Araúja, aborda as estruturas de exclusão e invisibilização que acomete, historicamente, corpos negros femininos e periféricos. A sutileza dramatúrgica desta cena tece críticas aos modos pelos quais o olhar dominante e engessado produz indiferenças a respeito destes corpos e corpas da margem. O que se percebe neste trabalho é ao mesmo tempo a problematização de um olhar insensível à existência de um outro subalternizado e, também, a verticalização de Suzana Araúja em suas subjetividades, desejos e fragilidades.
No palco, uma solitária cadeira, um vasilhame de metal ao chão e uma lâmpada suspensa definem um ambiente preenchido de vazios e certas precariedades. Suzana, em um vestido fortemente vermelho adentra o palco, portando uma sombrinha, salpicada por pontos rosas, que é girada e encobre a sua face. Logo após, a atriz segura o vasilhame como se estivesse a aparar goteiras de uma insistente chuva lá fora. Grita por sua mãe, mas não há resposta, apenas vazio e silêncio. No contexto poético da cena, a fragilidade desta casa dialoga profundamente com as dores desta mulher; as goteiras, os furos, a precariedade como resultados de violências e agressões quer perfuram sua humanidade.
Nesta cena, a iluminação, assim como em Pietá (cena da terceira noite), incorpora dramaturgicamente as oposições entre o profundo breu e os focos de luz. A lâmpada suspensa oferece uma trôpega luz que mal consegue abarcar o palco. Nesse sentido, a escuridão proposta por Lentes de Contato adensa a discussão acerca da invisibilidade destes corpos que não se encaixam nos padrões hegemônicos de estética e de subjetividade. Já no final, as luzes intermitentes perfuram a escuridão e agridem a retina, como se estivesse de fato provocando a seletividade e a sensibilidade desta retina, mediada por ideologias e pressupostos; isto é, um olhar orquestrado por recortes e parcialidades.
Nesse sentido, a cena de Suzana Araúja se aproxima diretamente da palestra-performance “Como falar de coisas invisíveis?”, da atriz e pesquisadora Val Souza, apresentada na SegundaPRETA. Neste espetáculo, Val provoca agudamente o olhar dirigido a mulheres negras; um olhar que, da coisificação sexual à invisibilização absoluta, agride concreta e simbolicamente subjetividades plurais. Em diversos momentos, Val Souza interroga-nos: “O que você enxerga quando vê uma mulher negra?” Em Lentes de Contato, Suzana Araúja pergunta-nos insistentemente: “Tá vendo?” Um ver que evidentemente ultrapassa a mera dimensão sensorial para abarcar a plena percepção e reconhecimento deste corpo feminino, negro, gordo e periférico, em sua dimensão humana, sem contudo, apagar ou homogeneizar seus traços físicos e culturais. É um olhar que redimensiona nossas relações com o mundo e questiona seus poderes. “Disseram que não podíamos existir”, afirma Suzana. Aqui a dramaturgia tensiona uma visão social e culturalmente solidificada sobre nossas humanidades negras que, ora desejam nos estereotipar em “existências apertadas”, segundo Soraya Martins, ora nos aniquilam literalmente.
Ao re-elaborar esteticamente suas dores e traumas, Suzana também investiga outros modos de olhar para si mesma. Este é igualmente um processo de enorme complexidade.
A última cena – Re-tratos, de Belo Horizonte, encerra o festival em tom soturno. O trabalho da Cia. Les Trois Clés povoa o palco com bonecos a construir uma sepulcral família composta unicamente por mulheres, cujas vidas são atravessas por violências, relações de poder e enigmas, articulados por uma dramaturgia carregada de símbolos. Nesta cena, a problemática nuclear se refere aos sistemas de força autocráticos e machistas que se impõe sobre as mulheres, como um todo. Porém a discussão ganha outras camadas de sentido ao depararmo-nos com a manipulação de bonecos, ou, melhor dizendo, bonecas que fissuram nossas concepções sobre as corporeidades/fisicalidades e, por excelência, desafiam nossa noção de humanidade, na relação ator-bonecas.
A cena se desenvolve em uma obscuridade fatiada por uma ameníssima iluminação, majoritariamente lateral. A sobriedade do texto espetacular é atravessada por continuadas batidas abafadas, em uma sonoridade percussiva pesarosa. Os vocalizes melancólicos, produzido fora da cena, constroem uma ambiência algo fúnebre, em que a dor e o abatimento são a substância de uma família chafurdada no silêncio e no mistério. A dramaturgia, de um modo geral, é tanto mais nebulosa, quanto mais instigante; as relações entre as personagens-bonecas nem sempre são evidentes, os segredos medeiam olhares e gestualidades ambíguas. Contudo, é perceptível um autoritarismo seco e persistente. A impressão global que se tem, ao observarmos a visualidade da cena, é que estamos contemplando de alguma forma o universo pictórico de Edvard Munch, no qual a morte, a tristeza e o sofrimento estruturam uma poética dilacerada pela dor.
As bonecas são cuidadosamente medonhas, trajadas de preto, como se estivessem em constante luto. Em um momento uma das bonecas parece dar a luz a um bebê, em outro uma serviçal lava nervosamente uma nódoa sangrenta no tecido branco; ações que demonstram um sistema doméstico baseado na pura força e no medo. Em outra passagem, por exemplo, uma boneca mais jovem, aparentemente, é vítima de um abuso. O que se percebe precariamente são ações, por vezes mecânicas, que visam não apenas encobrir fatos e violências, mas perpetuar um modo autoritário de relação. Muitos signos são nublados, deslizam à interpretação imediata.
Há uma personagem-boneca, mais velha, que carrega no peito uma foto, em preto e branco, de um senhor, ao que tudo indica, militar. É difícil definir a posição deste homem com relação à família de mulheres, mas a insistência dessa imagem, me remete à tenebrosidade d’O Retrato, de Gogol, no qual uma fotografia, diabólica e pungente, imprime fantasmas a influenciar a ação das personagens. Seria a fotografia, carregada pela senhora, de um patriarca morto ou distante, mas que ainda domina as relações domésticas? Em outro momento chave, uma boneca mais nova manipula bonecas de brinquedo, retirando suas roupinhas. A cena é de uma belíssima gravidade poética, como se a jovem, também ela uma boneca, estivesse a contemplar a si mesma, e a sua própria condição inumana, coisificada, fantoche sofrido de uma estrutura machista que a manipula.
Esta Casa de Bonecas, é ainda mais horripilante do que o drama de Ibsen, mais gélido, pesaroso e sombrio, em suas cavernosas relações e discursos. Algo continua, entretanto, isto é, relações de força e de poder que coisificam corpos de mulheres.
P.S.: Nesta última noite de cenas, um entreato, em especial, nos encantou e nos ensinou amplamente. Lara Vogue, funcionária do Galpão Cine Horto, orquestrou uma performance que, dá morte à exaltação da vida, discutiu a morte política e sistemática de corpos, corpas e corpes travestis e transexuais, num Brasil assassino. O seu belo, divertido e contundente discurso, após a performance, compartilhada com Kauan – aluno transexual do Cine Horto – diz de uma existência consciente de si e das tensões opressivas que orientam nossa sociedade. Conjugou-se o brilho, o lacre, e a beleza coreográfica, bem como a denúncia, a reflexão e o pensamento sobre modos de existência que não aceitam enquadramentos reducionistas e nem tampouco migalhas. Trata-se de efetiva justiça social, reestruturação ou destruição das atuais relações de poder e a afirmação de vidas sempre no plural.
P.S²: Na última noite do Festival de Cenas Curtas do ano passado, Nina Caetano exultava uma seleção de trabalhos marcada pelas presenças femininas, em que “o estético e o político esgarçam fronteiras, encontrando modos de falar sobre questões comuns, mas também das subjetividades presentes em cena”. Neste ano, encerramos deste modo também, em uma multiplicidade de cenas que desejam reorganizar e rever, estética e criticamente existências de tantas e diversas mulheres; negras, brancas, periféricas, gordas, jovens, idosas, etc. E, finalmente, concordo com Nina Caetano, quando esta diz: “Dias Mulheres Virão”.