Destronar a palavra, reencontrá-la (2º dia)
– por Victor Guimarães-
Foto: Guto Muniz
Numa cena contemporânea tão acostumada a um teatro declarativo – como se podia ver em alguns Cenas Curtas passados –, frequentemente tomado por momentos em que a tônica é a do discurso verbal claro e compreensível, voltado diretamente ao espectador, a noite de ontem impõe um desafio e tanto. Ou um alívio. Ao longo da noite, ouvimos muito poucos discursos articulados verbalmente e, em todas as cenas, há um esforço por encontrar novos lugares para a palavra: seja ao destroná-la de uma racionalidade unívoca, seja ao buscar novas formas de falar com o corpo, seja ao abraçar a opacidade de um silêncio inquietante.
No início, L O O P constrói sua poética entre a tela ao fundo tomada por feixes de luzes digitais – como a tela de um computador – e os dois bailarinos que dançam. O palco se torna uma superfície ocupável entre o projetor e a tela, por onde os corpos se movem e se transformam, também, noutras telas – ou em figuras no interior de uma tessitura luminosa. O jogo entre a trilha sonora eletrônica, as luzes e os corpos produz uma constante interação performática em que os ritmos visuais e sonoros se fazem e se desfazem num espaço cênico fluido, ao mesmo tempo repetitivo e mutante.
Os sons metálicos da música, os movimentos robóticos, as luzes intermitentes criam uma atmosfera futurista, como se o palco pudesse se transformar no ciberespaço invocado nalgum momento por vozes em três línguas distintas: um espaço em que a presença humana não é necessária para a comunicação como fonte de relacionamentos. É nesse mesmo espaço que emerge um diálogo entre uma voz masculina e Siri, a assistente virtual cuja voz já se tornou reconhecível. Perguntada sobre sua identidade de gênero (“você é mulher?”), ela responde dizendo que as concepções sobre gênero do mundo em que vivemos são demasiado limitadas. É então que a cena toma um outro rumo, um tanto abruptamente, e as projeções saltam da linguagem um tanto abstrata dos códigos para reunir uma iconografia fortemente corporal, centrada em corpos femininos. Começa a se articular uma evocação figurativa da opressão patriarcal: o movimento cessa em uma pose dos bailarinos com uma bandeja segurada pelo polo masculino do duo, sobre uma imagem digital da Pietà.
A escolha por situar uma evocação das estruturas patriarcais de gênero em um contexto pós-humano é curiosa. Na frase dita na voz de Siri, ouviram-se alguns gritos e aplausos de aprovação na sala, como se de repente um discurso progressista pudesse ser enunciado por uma inteligência artificial. Esse ciclo se fecha com um retorno em tom crítico a uma imagem tão fundadora na história do Ocidente, que encerra a cena. Mesmo negando-se a assumir um discurso articulado, o percurso iconográfico da cena é claro. Uma contradição, no entanto, não é trabalhada: Siri – como outras assistentes virtuais como Alexa, Cortana e Bia – é também uma das expressões mais visíveis do patriarcado em tempos digitais. Seus nomes e suas vozes são sempre femininos, como se a submissão absoluta ao usuário que essas inteligências encarnam como utopia fosse automaticamente um papel destinado às mulheres. O caminho Pietà-Siri talvez indique não uma superação, mas uma continuidade perversa, que a perspectiva futurista da cena parece não encampar como problema.
A Farsa do Bom Juiz começa, no escuro, com uma cacofonia sonora que reúne fragmentos diversos da história recente das rupturas jurídicas brasileiras, do golpe à Vaza Jato. Ouvimos as vozes de Dilma, Moro, Bolsonaro, Lula, reportagens sobre Jucá e o acordão com o supremo com tudo. Quando as luzes se acendem, passamos a lidar com uma farsa muda que se desenvolve ao redor de uma mesa. Inicialmente togados, os atores e atrizes encenam a coreografia de uma corte jurídica desvairada: a linha de produção logo se transforma em banquete festivo regado a bananas e champanhe, o trabalho logo se converte em farra. A rigidez coreográfica inicial – performada com muita precisão pelo elenco – se desfaz em patuscada.
É então que passamos a ver a composição em cena da representação da deusa da Justiça, com uma atriz portando suas vestes brancas, seus olhos vendados e uma espada nas mãos. Em consonância com a perversão da ordem jurídica, a balança, característica das representações da justiça desde a Grécia antiga, foi retirada da equação. Essa justiça será então estuprada em cena, simbolicamente penetrada por um ator com ajuda de um terceiro, em uma metáfora nada sutil. O fruto dessa penetração surgirá com estrondo da mesa, no corpo de um ator nu a surgir da fumaça, sobre o qual se projeta a voz de Porfírio Diaz, personagem de Paulo Autran em Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967): “Dominarei esta terra. Botarei estas histéricas tradições em ordem! Pela força, pelo amor da força! Pela harmonia universal dos infernos, chegaremos a uma civilização!”.
A aposta em uma cena coreográfica, sem diálogos ou monólogos, inteiramente constituída por metáforas gestuais e visuais, não corresponde a uma opacidade narrativa. A cena é implacável em seu sentido. A passagem de um ideal de justiça à pura celebração da força se inicia na transformação da corte jurídica em pândega animalesca e se conclui na invocação de Diaz. O poder de síntese é notável: temos agora uma elaboração do passado político recente do país em imagens categóricas. Por outro lado, a invocação de Terra em Transe obriga a um questionamento. As alegorias glauberianas (Eldorado, Paulo Martins, o próprio Diaz) sempre se fizeram por um empilhamento dissonante de elaborações históricas, com um forte componente de contradição interna que tornava o sentido um desafio e tanto – e é justamente isso que as faz durar tanto, a ponto de se tornarem potentes como matéria de interrogação do país ainda hoje. A excessiva linearidade e a progressão acumulativa de A Farsa do Bom Juiz apontam para outra direção.
Ainda no escuro, |tubo| começa com uma proposta radical: inverter o reinado do logos baseado no verbo e instituir o cu como episteme fundadora do humano. A cena-performance se fará nessa constante provocação da racionalidade ocidental, explorando outros territórios corporais para a expressão do pensamento. As composições coreográficas de Maia de Paiva em cena exploram esse território elástico: do pênis recortado em foco de luz que só diz “Eu falo! Falo! Falo!”, passando pela dança que repete a palavra pensamento mobilizando diferentes partes do corpo (como pensar com os seios? Com os braços e pernas? Com o corpo inteiro dançante?) até o cu reposicionado, em posição superior, que inverte o eixo norte-sul do corpo e agora nos ilumina com a luz da razão.
A performance em vídeo de Pedro Costa invocada por Jota Mombaça em “Pode um cu mestiço falar?”, que consistia em uma composição fragmentária de citações tendo como pano de fundo a imagem de seu cu em movimentos de contração-dilatação, parece ressoar aqui. A “palestra anal” subverte as regras do cânone acadêmico, mistura línguas fragmentariamente, desfaz o ideal binário de gênero ao invocar o cu como esse buraco que todo mundo tem – e que agora se atreve a falar. Em |tubo|, essa ideia se desdobra em coreografias, movimentos que buscam uma reorganização das hierarquias corporais, subversões dos espaços e dos tempos dramáticos. Em certa medida, se as duas cenas anteriores partiam do caos em direção à ordem – da justaposição de signos em desordem à construção de um sentido –, |tubo| percorre o caminho oposto: da enunciação verbal de uma proposta epistemológica a sua multiplicação no espaço da cena.
Em Eu Só, Com Verso, a palavra retoma sua centralidade como matéria dramática. No entanto, essa retomada só se faz por um descentramento: são as vivências periféricas que habitam uma linguagem que se faz entre a rima e a coloquialidade. A situação dramática é a mesma: cinco personagens, sentados sempre à mesma mesa de um bar, elaboram, um a um, solilóquios poéticos com dicções muito singulares. Uns mais ritmados, outros mais soltos; uns em que as aliterações são mais presentes, outros que arriscam uma rima mais livre; uns mais próximos de uma fala cotidiana, outros com uma lógica interna mais pronunciada; uns com uma carga dramática mais intensa, outros deliciosamente cômicos.
A cada vez que as luzes se apagam e se acendem, o palco-bar é transformado em sarau. Se as outras cenas mobilizavam um conjunto expressivo de outros elementos para destronar o reinado da palavra, aqui é a textura das entonações, as melodias de cada verso, as escolhas estilísticas de cada poeta que vêm reorganizar o espaço teatral. Numa depuração cênica notável – uma mesa, uma garrafa de cerveja, um copo, um maço de cigarros, um interlocutor sempre ausente, uma luz muito simples bastam para instaurar o teatro –, o espaço é tomado pela presença dessas vozes, que elaboram musicalmente uma experiência que é coletiva, mas que é também intensamente individual.
Certas opacidades, algumas transparências (4º dia)
– por Victor Guimarães-
Foto de Glenio Campregher
Não apenas consentir no direito à diferença, mas, antes disso, no direito à opacidade, que não é o fechamento em uma autarquia impenetrável, mas a subsistência em uma singularidade não redutível. Opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes. Renunciar, por um tempo talvez, a essa velha assombração de surpreender o fundo das naturezas.
Édouard Glissant
A noite de sexta foi feita de oscilações, ou de interpenetrações, entre dois polos que talvez possam ser imaginados como opacidade e transparência. Em vários momentos, os sentidos tiveram que enfrentar uma cena cujo sentido permanecia opaco, oferecendo-se como matéria plástica e musical densa, mas impenetrável. Noutros, a surpresa era encontrar uma dramaturgia a princípio plenamente inteligível, mas que se desdobrava em caminhos muito mais sinuosos na duração.
Endereço postal começa no escuro, com uma canção inteira a soar no teatro. A rima livre de Jorge Ben Jor em “Por que é proibido pisar na grama?”, seus versos a um só tempo claríssimos e repentinamente misteriosos, preparam a entrada de Preto Amparo em cena. Como em violento., temos aqui uma poética da disposição dos objetos: uma espécie de estrado metálico de cama, um chapéu sobre a grama verde, um círculo luminoso no chão, um saco de laranjas a pender do teto. Os objetos não são simplesmente funcionais. Como se formassem um altar, eles permanecem em cena como matéria simbólica fortemente evocativa, que persiste a nos inquietar por toda a cena. “E se eu pulasse? E se eu não tivesse medo?”, ele pergunta, depois de entoar baixinho o final da canção.
Durante toda a cena, ele percorre o palco, dirige-se à plateia, sempre inquieto, como se a calça, o paletó e a camisa do Vasco lhe fossem incômodos. A dicção não é assertiva, mas sempre titubeante. Ele por vezes nos dá as costas, fala baixinho, num solilóquio que não é de todo acessível, como se aquele corpo reivindicasse para si o direito a permanecer como existência interrogante à beira do abismo. As laranjas são espalhadas no círculo luminoso e uma contagem regressiva se inicia. Laranjas-mundos, singularidades irredutíveis que o número nunca alcançará. “Ó, corpo meu, fazei de mim um homem que interrogue”: a prece de Frantz Fanon ao final de O Tigre a Gazela (1977), o filme de Aloysio Raulino citado em violento., parece ressoar novamente aqui. Endereço postal persiste como potência de interrogação.
Em Ecdise, a opacidade se materializa no enfrentamento do espectador com os três corpos em cena. Corpos seminus, inteiramente pintados, que se prolongam em cordas e redes, como cobras grandes a se mover sinuosamente pelo palco, a entoar ruídos, músicas ou fragmentos de línguas desconhecidas. Essas esculturas vivas performam em cena um ritual, que em tudo faz pensar na ritualística dos povos indígenas amazônicos, mas que não nos oferece nenhuma tradução possível. Há um desejo de afirmar plasticamente, musicalmente, numa recusa às palavras da língua comum. A coreografia se bifurca em solos e se reúne em coro, numa interação entre os corpos que se oferecem como matéria densa aos sentidos.
Os filmes-rituais indígenas nos ensinaram a conviver com os bichos-espíritos, numa articulação constante entre uma visualidade misteriosa, nunca inteiramente traduzível ao olhar não-indígena, e a vida corriqueira da aldeia. Os espíritos-lagarta que recebem as crianças em Tatakox da Vila Nova (2009), filmados pelos Tikmũ’ũn (Maxakali) da Aldeia Nova do Pradinho, os vários animais-espíritos invocados pelas performances dos xamãs reunidos em Urihi Haromatimape: Curadores da terra-floresta (Morzaniel Yanomami, 2013), as mulheres-itseke que dançam em roda no ritual multitudinário de As Hipermulheres (Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette, 2011). Em todos esses filmes, um traço comum: a contiguidade entre a excepcionalidade do transe ritual e seu exato contrário, a cotidianidade mais banal da vida na aldeia. Ecdise escolhe um caminho oposto: redobrar o mistério da ritualidade numa cena suntuosa, que traduz no teatro o que parece ser uma reinterpretação em chave coreográfica dessa estética indígena. É extremamente difícil encontrar uma posição crítica sobre um território que me é tão desconhecido, mas não posso deixar de registrar uma impressão provisória: a de que esse transe coreográfico fabricado em cena talvez se aproxime mais de alguns dos clichês que a arte brasileira cristalizou ao longo do tempo na aproximação aos universos dos povos da floresta do que de sua reinvenção.
Represa começa com um corpo cruzando rapidamente o palco segurando uma lanterna. Num corte seco, Clara Trocoli adentra o palco, parcialmente molhada, com um rodo a enxugar o chão de uma água que não vemos. Esse rodo se tornará ainda haste, microfone, estandarte, crucifixo. Sozinha em cena, ela conduz a plateia pelos meandros de uma memória atravancada, marcada pelo trauma. “Uma família é um péssimo lugar para uma mulher sobreviver”. Ora dirigindo-se a nós, ora ao pai ausente ao qual o texto sempre remete, o monólogo vai se constituindo por uma série de jogos de palavras – tempestade em copo d’água, ficar molhadinha, afogar um homem numa taça de gin tônica – que circundam um sentimento represado.
O terreno é, a princípio, reconhecível. Essa tragédia íntima, no entanto, nunca encontra no texto ou na coreografia uma tradução simples, nunca se reduz ao refúgio sempre tentador da psicologia barata. O tom é um achado: o humor, as metáforas aquáticas, a desenvoltura em cena da atriz vão sempre multiplicando as ressonâncias dessa memória traumática, encontrando caminhos surpreendentes para expressá-la. O riso vem aos borbotões, para em seguida se tornar movediço, lamacento, profundamente incômodo. A água dessa represa vaza também para o terreno escorregadio de sensações pelas quais deslizamos, como espectadores, sem terra firme possível. Ao final, depois do apagar das luzes, a atriz ressurge no palco portando no corpo alguns dos signos espalhados pela cena, numa visão final sintética e provocadora, mas essa memória líquida que a cena criou em nós já não cabe na solidez de uma imagem só.
Essa articulação entre um território dramático transparente em sua familiaridade e seu posterior adensamento por caminhos surpreendentes é também a marca de Is this a man?, das Bacurinhas. Logo no início, o tom provocativo e cômico se instala na imagem projetada de uma bunda feminina portando óculos e bigode, falando diretamente para a câmera a emular o tom de uma voz masculina. O macho inicial do monólogo filmado fala pelos cotovelos (ou pelas nádegas), como se enunciasse uma masculinidade em desconstrução que, no entanto, deixa entrever todas as marcas tóxicas de sua normatividade indisfarçável. Na cena seguinte, parte do célebre monólogo de Hamlet é agora dita por três mulheres portando figurinos comumente identificados com o masculino heteronormativo, emulando o timbre masculino estereotipado.
No decorrer da cena, as três atrizes encenarão uma desconstrução performática do macho padrão. As situações escolhidas – os encontros casuais entre amigos homens, um boquete às escondidas no banheiro, uma festa num bar, as cantadas toscas dirigidas às mulheres da plateia – são uma coleção de interações corriqueiras, plenamente reconhecíveis, cuja gestualidade extremamente codificada o estranhamento do corpo feminino vem ressaltar. O que começa como piada hilária, no entanto, logo revela mais e mais camadas, como nos momentos em que a heteronormatividade viril se desfaz em contradição. Nos vídeos que vez ou outra irrompem na tela, a literalidade da proposta adquire uma força poética extraordinária: num deles, o bigode e os óculos são implantados nos seios; noutro, são os lábios genitais que servem de boca para a fala masculina. Nesses monólogos, a comicidade inicial se instala de imediato, mas as camadas da opressão patriarcal logo se depositam nos interstícios do texto, a manifestar seu devir assassino.
Is this a man? decide abraçar o clichê em toda a sua exuberância, esticá-lo ao máximo, até que as cantadas percam inteiramente a graça, até que o código se dobre sobre si mesmo e deixe entrever as entranhas de seu funcionamento visceral. O riso fácil não é, aqui, nenhum obstáculo ao pensamento, mas justamente o terreno de sua multiplicação imprevista. Na reinvenção anatômica do corpo feminino, na desconstrução cênica dos rituais da masculinidade, no estranhamento audível entre os timbres e as vozes ou no intervalo visível entre os corpos e os gestos, as Bacurinhas reencontram a opacidade no seio da transparência obsedante do patriarcado.