Da escuridão à claridade
– por Victor Guimarães-
Foto de Guto Muniz
Após uma introdução feita de gritos e escuridão e movimento embaixo da lona preta que constitui o cenário, Transe interpõe uma pergunta ambiciosa. Escrita na tela que ocupa o fundo do palco e repetida pela voz ofegante da atriz enquanto digita, a questão enuncia: o que a arte tem a fazer ou dizer diante do sistema de violência, esquecimento, silenciamento e usurpação que assola a América Latina? A dupla ênfase – o texto escrito e sua repetição vocal – não deixa dúvidas: é preciso encarar a gravidade dessa pergunta e responder a ela. Num corte seco, sem transição, passamos ouvir o depoimento de Emely Vieira Salazar, psicóloga que foi presa política entre 1970 e 1971, e a ver seu rosto na tela, filmado por uma câmera em cena. No palco, ao lado da atriz-entrevistadora que intervém brevemente para manter a conversa acesa, ela conta da noite da prisão, das torturas que sofreu na cadeia durante dois anos – choque elétrico, palmatória, pau de arara –, do encontro inaugural com Herculano Mourão Salazar, estudante igualmente perseguido que viria a se tornar seu companheiro de vida inteira, do reencontro um de seus torturadores, o Tenente do Exército Marcelo Paixão de Araújo. Mesmo quando se refere aos horrores da tortura, a voz de Emely é serena, desafetada – a voz de quem já contou essa história inúmeras vezes. Sua memória já fez o trabalho necessário para seguir adiante. Quando menciona a cena do reencontro inusitado com o torturador numa festa de casamento, ela ri.
Esse regime de escuta é logo interrompido por uma imagem da capa de uma revista Veja de 1998, que ocupa a tela e traz uma entrevista do Tenente Paixão. Enquanto vemos recortes do depoimento, um ator se levanta e passa a repetir as frases do torturador à revista, num tom radicalmente diferente do anterior: alto, grave, ameaçador. É então que passamos a ouvir uma gargalhada insistente, que se sobrepõe às falas. O tom da cena sobe, vira grito novamente. Um atuante nu desce as escadas nesse desvario e chega ao palco, compondo um transe com a lona preta no chão. Logo chegará a primeira atriz, também despindo-se. Ambos têm no corpo uma série de inscrições, que a câmera vem ressaltar na tela ao fundo: ele, as siglas das instituições da repressão de ontem e de hoje (DOPS, DOI-CODI, DEOESP, DENARC); ela, um conjunto de palavras que, somos informados, foram coletadas das paredes de um prédio na Avenida Afonso Pena que serviu de sede para esses departamentos, durante uma imersão de quatro semanas.
A trilha sonora soa forte, os corpos se digladiam com a lona preta, as inscrições empilham sentidos. O título e a pergunta inicial, que poderia ter sido retirada de um texto de Glauber Rocha dos anos 1960, são inequívocos: a poética da Maldita Cia aposta na criação de um transe, em que os horrores da história e do presente, os estertores desta terra fundada sobre o absurdo colonial, se multiplicam até o ponto da exasperação. Na convocação de Emely para o palco, no entanto, a cena assume um risco difícil de contornar: como engajar o espectador nesse transe embriagado, gritado, denso, quando acabamos de ouvir o testemunho direto de uma sobrevivente, que traz no corpo e na memória as marcas da repressão real, mas lida com elas de maneira absolutamente sóbria?
O abismo entre o regime de atuação de Emely e o de Elba Rocha e Rodrigo Antero se faz sentir. A cena se cinde em duas energias díspares: de um lado, a sobriedade do esforço documental, a multiplicação de dados e siglas, a escuta atenta do testemunho, a inscrição final que diz “Documento número 1 – dedicado a Emely e Herculano”; de outro, uma poética da afetação, da ênfase, da gargalhada-grito, do zoom no cu. A aposta parece ser na convivência irresolvida entre essas duas poéticas. Mas o engajamento tanto numa quanto noutra é atravancado: nem a sobriedade tem espaço para se instalar, nem o transe é radical o suficiente para nos fazer experimentar essa exasperação sem que ela nos soe artificial diante dos relatos. Posto ao lado da evidência histórica, o intervalo da mediação na composição do transe é que salta aos olhos e aos ouvidos: os corpos retorcidos, os gritos, a danação encenada no palco ao lado de Emely perde força na comparação inevitável, até o ponto em que atenção se volta para o esforço de fabulação a partir do material histórico, e não para o impacto de seu resultado estético.
Perto do fim, enquanto os atores seguem no transe, Emely toma o microfone e começa a cantar: “Vem, meu menino vadio / Vem, sem mentir pra você / Vem, mas vem sem fantasia”. Seu canto súbito é tão surpreendente que é difícil atentar para qualquer coisa que aconteça ao lado. O desafio consiste então em instalar um transe poético suficientemente exasperado até o ponto em que ele não soe mais como a emulação de um transe. Em equilibrar-se do lado de cá do abismo entre a ficção e a mentira. Em compor um transe necessariamente mediado, de segunda mão, mas com a energia suficiente para nos fazer mergulhar na espessura dessa fantasia.
O célebre texto de Nelson Rodrigues respondendo no calor da hora a Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) era enfático: “Nós estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda”. Depois de tanta golfada mais ou menos hedionda de 1967 até hoje, o desafio da arte brasileira talvez seja o de reencontrar a espessura desse vômito, de nos instalar novamente no risco de que ele respingue violentamente em nós.
A passagem da gravidade de Transe à sátira de Quem vai olhar as crianças? é brutal. Os ouvidos demoram a se acostumar com a palavra “resistência” significando agora uma prova de esforço físico entre cinco meninas que disputam a atenção de possíveis investidores em uma espécie de reality show para eleger uma candidata a futura representante política. Comandada pela ex-deputada e assessora política Alone May (Raquel Castro, também responsável pela concepção da cena e pelo texto), essa reunião de líderes do futuro em tempos de hipermidiatização da política aposta numa veia cômica clara e multicolorida, no extremo oposto da escuridão espessa de Transe.
Fala-se de macropolítica, discute-se questões como representatividade feminina e feminicídio, mas toda a encenação é dominada por uma estética entre concurso de Miss e programa televisivo do tipo Passa ou Repassa. Enquanto cada adolescente com idade entre 13 e 16 anos é submetida a sucessivos testes de performance, a comandante autoritária do jogo – uma espécie de Joice Hasselmann alcoólatra – decide quem tem ou não o perfil para seguir adiante. Há uma sobreposição incômoda de camadas: se os figurinos das meninas apostam nos slogans de uma nova geração de feministas, se seus discursos invocam as palavras de grandes mulheres progressistas, todo o jogo da cena consiste em redobrar a opressão feminina: a estrutura onipresente é a da competição, do teste, do treinamento para a maturidade, da servidão (a mesma lógica subjacente às cozinhas de brinquedo ou às bonecas).
A escolha da dramaturgia é das mais instigantes: em tempos de luta pela representatividade feminina na política institucional (num mundo em que 94,3% dos países são chefiados por homens), como pensar a convivência entre figuras tão díspares quanto Marielle Franco e Theresa May? Ou entre Greta Thunberg e Joice Hasselmann (não citada, mas possivelmente evocada nos cabelos loiros e no figurino da comandante)? No fim das contas, a nova geração destrona a chefe do grupo e toma o poder. Sentada à mesa da líder, a mais jovem das garotas desmonta uma matriosca com as representações dos últimos presidentes brasileiros. Em fila cronológica, ela dispõe uma a uma as bonecas-presidentes, da menor à maior – a presidenta Dilma, claro. Temer é representado por um boneco de um vampiro no caixão e Bolsonaro, numa piada deliciosa, por três rolos de papel higiênico empilhados.
A leveza cômica de Quem vai olhar as crianças?, situada pela curadoria imediatamente depois de Transe, impõe um desafio ao olhar crítico. Seria tentador simplesmente não tomar a sério o esforço poético-político da encenação, visto que tudo poderia soar como piada vazia em meio aos imensos desafios da arte latino-americana enunciados pela cena anterior. As ambições são diametralmente opostas. O que, certamente, não deveria nos levar a desvalorizar automaticamente a segunda na comparação.
Por outro lado, do ponto de vista das energias dramáticas, ocorre algo semelhante no curso de Quem vai olhar as crianças?. Se a justaposição problemática entre uma lógica libertadora e outra opressora se sustenta durante algum tempo, a virada final desfaz as incongruências e reposiciona os lugares, sem levar a cabo a exasperação que poderia advir dessa convivência estranha no seio de uma mesma luta. Ao invés de adensar o incômodo, a água na cara da comandante sinaliza sua superação. E talvez não haja arte política possível hoje sem um mergulho decidido nas arestas.
Artes, Crise e Necropolítica: O que nos resta fazer diante do extermínio?
– por Guilherme Diniz-
Foto de Guto Muniz
Recordo-me que a 19º Edição do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, ocorrida em 2018, enfatizava em sua programação a imagem de uma vigorosa corda retesada, significando de algum modo, a intensificação de tensionamentos sócio-políticos que reverberavam nos modos de produzir e pensar um teatro cada vez mais implicado no mundo, nos fatos sociais, e na emergência de conflitos e contradições agudas. A simbologia da corda também evocava a possibilidade e a necessidade de se construir laços firmes para suportar e reagir a um contexto de inumeráveis violências. Isso em 2018…
Qual imagem daria conta de sintetizar a agudeza das crises contemporâneas no Brasil, em que a destruição de direitos, se faz acompanhada de uma intensificação dos discursos e práticas fascistas e censórias? Qual imagem seria capaz de captar a necropolítica – como nos convida a pensar Achille Mbembe – na qual a violência letal e a decisão sobre quem vive e quem morre se assume cada vez mais como uma plataforma política, não apenas de um governo/gestão, mas de um Estado, contra corpos negros, indígenas, etc.?
Em sua 20ª edição, o Festival de Cenas Curtas, como uma flor, germina na aridez de um contexto em que a cultura e as artes, sobretudo aquelas mais dissidentes (negras, trans, feministas, LGBTTQIs) são sistematicamente atacadas, emparedadas em suas pluralidades e potencialidades críticas de oxigenar afetos e relações, recusando dogmatismos. O girassol que busca a luminosidade solar deseja escapar a tempos sombrios, governados cada vez mais duramente por homens brancos e suas lógicas de poder. A singeleza da flor, poetizada por Carlos Drummond de Andrade e sublinhada pelo programa desta edição do Festival de Cenas Curtas, nos sugere uma importante articulação entre força – capacidade de brotar mesmo no asfalto ressequido – e delicadeza – alimentar afetos que possam de fato nos curar e nos humanizar em meio à tormenta. E penso que ainda acreditamos na possibilidade de expressões teatrais que nos permitam habitar esteticamente outros universos e espaços, gerando, nesse processo, olhares mais pensantes e generosos acerca de nossas humanidades tão diversas.
A primeira noite de apresentações se desdobrou em cenas nas quais, de um modo panorâmico, há um questionamento sobre os aparelhos/instrumentos histórico-políticos que dificultam ou impossibilitam os sujeitos de construir suas próprias narrativas pessoais ou coletivas, inviabilizando não apenas a circulação de determinadas vozes, pensamentos e visões, mas também a sua plena prática no âmbito público/político. Percebo tais questões nos trabalhos apresentados – Transe; Quem Vai Olhar as Crianças?; Rueiros; Um Preto. Passo agora a pensar mais detidamente as duas últimas cenas, compartilhando assim os olhares críticos com Victor Guimarães que se debruça sobre as demais apresentações.
A configuração cênica de Rueiros, de Belo Horizonte, se alicerça a partir das relações vivenciadas por cinco personagens que se entrecruzam no espaço urbano. Aqui, a rua é uma personagem viva, atuante; território de conflitos, ambiente poroso, permeável e dinâmico no qual narrativas e anseios se justapõem, de maneira ágil e multifocal. A espacialidade urbana é teatralizada por uma dramaturgia na qual discursos fragmentados se sobrepõem e se entrechocam, provocando ruídos na comunicação entre as personagens. No fluxo acelerado e por vezes caótico das cidades, aqueles indivíduos negros, visíveis e invisíveis, socialmente, expõem suas urgências e desejos, construindo, de modo acidentado, narrativas sobre si e sobre o mundo vertiginoso que os rodeia. Nesse contexto tumultuoso, o cotidiano pode condicionar comportamentos, limitar as possibilidades de ver e habitar a cidade e inviabilizar reais encontros, por vezes, nos deixando indiferentes ao que nos rodeia. Uma personagem afirma: “a gente se acostuma com o que não devia”. Como furar essa repetição mecânica imposta pelos fluxos urbanos tão acelerados? Em outro momento se diz: “Eu devo ser invisível”. Por que a morte diária de jovens negros/as, por exemplo, já não espanta mais?. Que olhar é esse já habituado, insensivelmente, a ver tais ou quais violências? Em Rueiros uma cascata de ritmos e sonoridades se interpenetram, conjugados em uma paisagem sonora pulsante, construindo aquela geografia urbana repleta de estímulos, ruídos, dinâmicas vocais (corais e individuais), constantemente em choque. Em cidades cada vez mais inóspitas à determinadas vidas e relações, é preciso criar estratégias não somente de sobrevivência, mas também de afetação.
A última cena da noite, Um Preto, também de Belo Horizonte, elabora uma deslizante composição poético-performática na qual o signo negro é incessantemente reinterpretado, deslocado, fissurado e tensionado, em uma dinâmica cênica matizada pela multiplicidade de discursos e vetores sonoros. A repetição é um elemento dramatúrgico constante neste trabalho, desafiando o próprio sentido fixo das palavras que definem uma existência/identidade. “Um preto desejo, um preto rei, um preto feliz, um preto arquivo, um preto palmiteiro, um preto joga bola etc.” No fluxo linguístico ininterrupto, em que o termo preto é intensamente repetido, os três corpos negros em cena, desafiam a linguagem que aprisiona a pluralidade de ser. O que pode um preto? O que pode um corpo preto no mundo? O que pode um preto crítico teatral? Um preto – o artigo indefinido se refere a qual preto? A qualquer um? Em um contexto histórico-cultural diaspórico, nossos corpos negros, como nos sugere Stuart Hall produzem e vivenciam identidades múltiplas, marcadas não pela continuidade linear, mas pelas rupturas. Hall ainda nos questiona: “Como podemos conceber ou imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento após a diáspora?” Os três corpos negros em cena, a meu ver, são corpos-questões, corpos-dilemas ou corpos-encruzilhadas, em que inúmeros marcadores culturais, sociais e históricos se entrecruzam, se atravessam sem uma ordem fixa. “Um preto Exu?” Um Preto Zé Pelintra? Em diversos momentos a cena se aproxima e se afasta de estereótipos, desafiando e provocando (as vezes pela ironia) um imaginário racista/racializado sobre corpos negros. E aí as palavras poéticas de Ricardo Aleixo ecoam: “quando se diz que um homem é um negro o que se quer dizer é que ele é mais negro que propriamente homem”. O que/ Quem me torna um preto? Ser alvejado por 80, 111 ou 500 anos de tiros? O atabaque ou a espada de São Jorge, em cena? Opa! Eu não sou seu preto! Quando a linguagem aprisiona e quando liberta?
É difícil (e talvez arriscado) sintetizar, de modo conclusivo, uma noite de apresentações tão diversas, mas penso que direta ou indiretamente as cenas desejam pensar e/ou ressignificar linguagens como um ato de enfrentamento a quaisquer formas de silenciamento, esquecimento ou aprisionamento da liberdade/multiplicidade de formas de ser, estar e ocupar o mundo.