Crítica a partir do espetáculo “Seis personagens à procura de um lugar” (Teatro&Cidade – Núcleo de Pesquisa Cênica do TU/UFMG).
– Por Clóvis Domingos
“ O jogo dos passos molda espaços. Tece lugares” (Michel de Certeau. A Invenção do Cotidiano).
Durante o mês de maio, os atores-pesquisadores do Teatro&Cidade – Núcleo de Pesquisa Cênica do TU/UFMG[1] apresentaram A Trilogia Andarilha (composta por três “manifestações teatrais”) em diferentes espaços de Belo Horizonte. Como um grupo de mascarados a se deslocarem pelas ruas e praças, tais manifestações ocuparam o espaço público e nele instauraram ambientes de convívio e criação. “Intermitentes ou vai e vem”, “Trincamatraca: uma mascarada de rua” e “Seis personagens à procura de um lugar” invadiram o cotidiano urbano e criaram situações nas quais ficção e realidade se embaralharam.
Nesse texto, narro minha vivência a partir do espetáculo-jogo “Seis personagens à procura de um lugar”, apresentado nas imediações do Centro Cultural da UFMG, na região do baixo centro da cidade, numa sexta-feira à noite. Se nos outros dois trabalhos, o grupo utilizou máscaras tradicionais típicas de manifestações de caráter rural, em “Seis personagens à procura de um lugar”, a cultura urbana foi evocada a partir de uma inspiração na estética chapliniana.
O espetáculo-jogo alterna momentos de concentração e dispersão pelos espaços da cidade. Lentidão e velocidade. As seis figuras, ao mesmo tempo que parecem esperar algo, também se movimentam em busca de alguma coisa ou algum lugar, se ocupando de tarefas inventadas para se manterem minimamente vivas. Há um som-sinal que, ao soar como alarme, se repete a cada momento em que um jogo-situação será sorteado ao vivo diante da plateia e assim alguma coisa se apresenta, acontece, age, movimenta, desorganiza, perturba, encanta. Quando as figuras jogam e brincam com a situação sorteada, há uma mistura e espécie de dissolução com a cidade, o que nos dificulta identificar quem agora atua cenicamente e quem apenas passa, assiste a, atravessa, para, olha, compõe com o evento cênico.
No caso dessa manifestação teatral ser um resultado de contínuo trabalho de pesquisa, tem ela o mérito de priorizar elementos sonoros e visuais que de alguma forma garantem que nossa atenção não se dilua totalmente, conseguindo fazer com que nossa percepção seja aguçada de forma intensa. Há um pequeno público que vai para acompanhar a deriva desses precários mascarados urbanos e há uma segunda camada de expectação e participação: os moradores da cidade e das ruas, que se encontram inesperadamente com essas estranhas e poéticas presenças. Dessa forma, diferentes reações e relações são estabelecidas, o que torna a cidade um espaço de acontecimentos extracotidianos. A cidade se torna também personagem, lugar de encontros, provocações, produção de paisagens corporais e espaciais até então inéditas, instigantes composições do urbano e do humano.
Entre composição e interrupção, os atores-brincantes precisam lidar com uma cidade barulhenta e difusa, encantadora e agressiva, acolhedora e perigosa, desigual e informe, daí mesclarem técnicas de improvisação aliadas a uma precisão composicional referente às necessidades e especificidades dos diversos quadros cênicos propostos como disparadores de jogos, imagens e situações. Os atores-brincantes, na apresentação que pude acompanhar, em nenhum momento perderam a oportunidade de jogar com as pessoas e os espaços. Apresentavam um frescor vibrante na experiência partilhada com a rua, ao mesmo tempo que dominavam e cuidavam não só do andamento e ritmo dos jogos, como também dos espectadores desavisados que por lá surgiam e aderiam ao convite de se buscar um lugar nesse acontecimento tão potente.
Um mérito a ser destacado nesse trabalho é a dramaturgia que consegue criar tipos muito diferentes uns dos outros, revelando assim corporalidades e temporalidades dissonantes, nos permitindo identificar figuras bem singulares: desde aqueles mais sonoros, engraçados e agitados, até os mais estáticos, silenciosos e “preguiçosos”, isto é, seres protegidos e ao mesmo tempo anexados a caixas de papelão, que atuam através de uma instalação plástico-espacial e nos olham interrogando sobre as possibilidades de se existir e resistir na cidade. Por exemplo, há um momento em que um desses seres “tristes” está dentro de uma embalagem cujo escrito é: “seu mundo mais feliz”. Sutileza que pode passar despercebida para muitos, mas que para mim denuncia as contradições que vigoram nas partilhas da vida citadina. Pequenos “chaplins” a nos co-mover em nossas diárias automatizações.
A vida que não se vê. Em “Seis personagens à procura de um lugar” parece haver o desejo artístico do grupo Teatro e Cidade de colocar em evidência a vida dos sujeitos pobres e marginais que habitam o centro da cidade. Os homens lentos, na denominação do geógrafo brasileiro Milton Santos. Num dos jogos, há uma figura que grita: “Eu gostaria de dizer que eu falo”! Após alguns segundos, sua voz é abafada e silenciada por caixas de papelão que acabam não só por calar seu grito, mas invisibilizar seu corpo. Tal momento se configura, a meu ver, como crítica social contundente aos milhares de sujeitos empobrecidos e esquecidos nas esquinas e marquises da cidade. “Vidas precárias e vulneráveis”, para Judith Butler, das quais desviamos nossos olhares e com as quais não queremos nos haver, por escancararem as mazelas sociais vigentes.
Essas presenças “incômodas” e na maioria das vezes invisíveis, inaudíveis e anônimas seriam existências vaga-lumes, que, com sua pouca e fraca luz, lutam pela sobrevivência na cidade. São sobreviventes e resistentes. “Sinais luminosos” que circulam na solidão e vastidão das noites e emitem minúsculos gestos de vida. Interessante que pequenas luzes estão afixadas aos objetos e figurinos cinzentos de alguns personagens (escolha da figurinista Tereza Bruzzi e de todo o grupo numa alusão a uma cidade cinzenta repleta de pedras, asfalto e prédios, carente de cores vivas), quase um convite a olhá-los e neles também reconhecer uma réstia de cidadania e dignidade. Na obra “A sobrevivência dos vaga-lumes”, de Georges Didi-Huberman, há um apelo para que em tempos de alta luminosidade espetacular que muitas vezes nos cega a visão, consigamos ainda enxergar a intermitência, a luz pulsante, frágil e passageira daquilo que resiste e parece estar ofuscado.
Na apresentação a que assisti, um homem que por ali transitava se integrou ao trabalho cênico, atuando em grande parte dele. Seu precário carrinho, não de compras (mas de restos e sobras), foi também objeto de cena e sua presença alegre se fez percebida pela força do jogo ficcional. Anderson Augusto, nome desse “vagalume” real da cidade, interferiu, jogou, imitou ações dos atores-brincantes, falou sobre sua vida, criou cenas paralelas às desenvolvidas pelo grupo, enfim, foi mais um personagem à procura de um lugar. Seu acolhimento nessa encenação andarilha deu-lhe momentaneamente um lugar de visibilidade e discursividade. Encontro entre ficção e realidade.
Anderson sabia que estava “brincando de teatro” e se divertia com isso. Para nós, espectadores outros e privilegiados, sua presença acentuava e denunciava a vida daqueles que se encontram alijados da dinâmica social. Sua presença configurava uma camada de instabilidade perceptiva para nós, pois quando ele utilizava seu próprio cobertor para se deitar no chão da rua ao lado dos outros personagens vaga-lumes, aquilo já não era mais ficção, era sua vida de fato, seu cotidiano, seu dia a dia.
Nessa noite o que presenciamos foi a saga não de seis, mas de Sete personagens à procura de um lugar. O grupo mascarado ganhou mais um vaga-lume até então perdido nas paisagens noturnas. Um paradoxo: a máscara teatral desvelando e desmascarando a realidade social. E mais: a força do cômico como gesto político. Ríamos quando na verdade tínhamos vontade de chorar…
Teatro e responsabilidade social. O trabalho do grupo Teatro e Cidade, ao adentrar a vida urbana, expande o fazer teatral e o faz acessível a todo tipo de gente. Teatro popular e marcadamente político por se colocar ao alcance de todos aqueles que se permitem por um instante ficcionalizar, brincar, se relacionar, talvez até se distrair da dureza do real. Em “Seis personagens à procura de um lugar” há um deslocar-se infinito. Como figuras beckettianas, eles oscilam entre parar e descansar e, ao mesmo tempo, andar e prosseguir. A força desse trabalho artístico está em como ele lida com a fragilidade humana. Quando questionado sobre o sentido da responsabilidade, o pensador Paul Ricoeur afirmou: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Eu diria que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita. Porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda. Entregue ao nosso cuidado[2]”.
Talvez nessa caminhada, esses personagens, como os sujeitos reais marginalizados, estejam buscando uma cidade mais solidária e menos hostil. Entre espera e procura, jogo e realidade, todos esses vaga-lumes tentam se ancorar e encontrar um abrigo provisório. Terminado o jogo-espetáculo, eles seguiram em sua perambulação pela cidade e eu voltei para o conforto e proteção da minha casa. Mas sentia-me deslocado, emocionado e confuso. Buscava um lugar para me proteger dessa ferida aberta, provocada pelo contato doloroso, e ao mesmo tempo necessário, com uma obra cênica que, permeando o poético, o grotesco, o sensível, o pequeno e o político, mais uma vez me atualizava uma cidade que não cessa de nos machucar.
Espetáculo visto no dia 27 de maio de 2017, nas mediações do CCUFMG, Belo Horizonte.
Ficha técnica:
Direção: Rogério Lopes
Criação e dramaturgia: Coletiva
Atores criadores: Diego Meneses, José Antônio de Almeida, Nayra Carneiro, Pedro Vilaça, Rikelle Ribeiro e Rogério Lopes
Figurino e adereços: Tereza Bruzzi e grupo
Fotografia e filmagem: Naum Produtora
Workshop de caracterização: Mauro Gelmini
Workshop de performance: Flávio Rabelo
Workshop de teoria teatral: Elisa Belém
Workshop de dança: Margô Assis
Workshop de consciência corporal a partir de matrizes afro-brasileiras: Gercino Alves
Workshop de jogos teatrais: Fernando Linares
[1] Para saber mais sobre o núcleo de pesquisa: https://www.teatroecidade.com/
[2] BLATTCHEN, Edmond. O único e o singular. Tradução de Maria Leonor Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 2002.