— por Luciana Romagnolli —
Ensaio sobre “Rosa Choque”, “As Rosas do Jardim de Zula” e “Domingo”, de Cida Falabella (BH)
No momento em que a misoginia afeta tão visivelmente a política nacional, fundamentalmente patriarcal e ainda aferrada a valores excludentes e preconceituosos acerca de gênero, classe, raça e sexualidade; em que retrocedemos décadas diante de um ministério sem mulheres nem negros e da extirpação ou deturpação das pastas da Cultura e das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, entre outras; faz mais sentido do que nunca observar o trabalho da diretora e atriz Maria Aparecida Falabella, a Cida Falabella, por uma perspectiva que revela uma política da mulher e uma mulher política, dando atenção à democratização da arte por meio de uma linguagem cuidadosa em não ser elitista e certa da força da conscientização e da união.
“O privado é político”, “o pessoal é político”, “o íntimo é político”. Com essas afirmações, o movimento feminista desde os anos 1960 combate um mecanismo social que confinou a mulher ao espaço doméstico (a mulher do lar) e, até hoje – quando a necessidade de contribuir com a renda familiar já permitiu que as mulheres ocupassem o mercado de trabalho, ainda que recebam salários menores e acumulem jornadas de trabalho dentro e fora de casa – insiste em atribuir a tudo que se relaciona à mulher uma dimensão “pessoal”/ “passional” que a deslegitime no fluxo de discursos e poderes correntes. Venho falando sobre isso já em outros textos, como na revisão da MITsp, por entender que, nessa primavera feminista e seu contrafluxo reacionário, cada vez mais, este é um território fundamental para a discussão de ideias.
Quando se diz que o privado é político, respondendo à concepção contrária bastante disseminada em nossa sociedade, o que se critica é justamente a hierarquia entre público e privado que favoreça homens e seus séculos (milênios, se saímos dos limites do Brasil) de acesso restritivo ao poder. Ao mesmo tempo, é uma tomada de posição contra a argumentação de que no campo privado-pessoal as lutas políticas não devem se meter. Isso inclui as relações familiares (e a violência homofóbica, lesbofóbica, misógina e machista dentro de casa), as relações sexuais (poderia repetir aqui o parênteses anterior) e, claro, o questionamento dos cidadãos de direita e de esquerda a respeito de seu comportamento entre quatro paredes.
Desde os anos 1960, então, o movimento feminista tenta romper a dicotomia entre público e privado bradando, por exemplo, que “quem ama não mata”, contra os crimes “passionais” ou de “honra” – e todo dia, ainda, acontecem feminicídios. Na semana em que iniciei este texto, um marcante fato foi noticiado como “Voz manda e pai estupra e mata filha de 6 meses”. Uma manchete só possível numa sociedade enferma, em que não somente atos como esse acontecem com frequência, mas são comunicados com adesão ao ponto de vista masculino que simplesmente reproduz a absurda “justificativa” do criminoso.
Manchetes de jornal assim são documentos usados em cena de “Rosa Choque” (2015), espetáculo do grupo Os Conectores, dirigido por Cida Falabella, para fazer uma conexão direta entre a ficção que se cria dentro do palco e a realidade social fora. A violência física e simbólica contra a mulher desdobra-se em distintas facetas nesta e em duas outras peças da artista mineira: “As Rosas no Jardim de Zula” (2012), como diretora, e “Domingo”, como atriz e dramaturga (2015).
A quem estranhar que este ensaio tarde a falar propriamente de teatro, ocupado em suas primeiras linhas com o contexto sociocultural do país, peço licença de aqui não desligar o teatro da vida social e política, acreditando nesse encontro como potência necessária a este momento histórico. Trato aqui não de uma arte que apazigue o espírito nem proporcione a elaboração poética de mundos alternativos, mas de uma arte que seja criação a partir da realidade, com toda carga de afetação e ação que essa relação direta propicia. Esta é, afinal, uma das formas mais legítimas de realização de uma arte do presente, uma arte do encontro – como diria Jorge Dubatti, uma zona de experiência e elaboração de subjetividade, onde nossa percepção do mundo é despertada para experiências extracotidianas, e se alarga. Portanto, um campo de transformação de humano a humano. Ou mulher a mulher.
Especialmente importante quando estas estão alijadas até mesmo dos ministérios, como ora acontece, e as conquistas feministas das últimas décadas mostram-se ainda frágeis e insuficientes. Não que esse “tríptico” de uma política da mulher, dirigido por Cida, exclua os homens, ao contrário. O teatro da diretora, conforme falaremos mais adiante, é extremamente inclusivo, o que diz muito da ética com a qual a artista conduz seus trabalhos.
Há uma coerência de base entre os três espetáculos citados antes e o teatro político praticado por Cida com sua companhia ZAP 18 – Zona de Arte da Periferia no Serrano, bairro periférico de Belo Horizonte. Trabalhos como “Esta Noite Mãe Coragem” e “1961-2013[2015]” identificam-se ao teatro pedagógico-político de herança brechtiana e forma épica. Semelhante distanciamento crítico e didatismo aparecem já atravessados pelas experiências performáticas das últimas quatro décadas, marcadas pela afirmação da presença e da vivência dos corpos que se encontram num espaço-tempo, também nas criações dedicadas às questões relativas a ser mulher.
Ecoem as palavras de Simone Beauvoir – “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” – ou as de Lacan – “a mulher não existe” – ou quaisquer que neguem o essencialismo e a própria definição (necessariamente redutora) do que seja “mulher”, esta(s) só se define(m) como construção. Invenção. Se a mulher não existe, se não nasce determinada, pode inventar-se, reinventar-se contra amarras sociais que tentam limitá-la. Tal margem de invenção é onde mulher e teatro se encontram, ambos construtos sociais, coletivos, mas também individuais, contra as normas naturalizadas. Daí que ser mulher é (sempre) político: configura formas de vida possíveis. É potência e travessia. Como inventar para si uma existência no contrafluxo?
O território de “inexistência” da mulher é o território do “outro”, aquele não nomeado – como as vítimas de guerra dos países inimigos, sem rosto. O outro, nesse sentido, é aquele com quem não há identificação, é a diferença, a exceção, a margem, enquanto o centro e a norma, que se pretendem universais, estão no masculino (e no branco, e no europeu, e no heterossexual). Exemplo do momento é o narrador olímpico que se queixa das críticas por chamar uma atleta de “Bolt de saias”, em alusão ao medalhista Usain Bolt. Para ele, é uma comparação “óbvia”. A naturalização do lugar da mulher como “outro” se revela no masculino como referência, padrão. Outro exemplo esportista? Quando se fala “a seleção brasileira de futebol” ou “a seleção de vôlei”, de qual sexo se imagina tais equipes? E como dizer que uma atleta é a maior da história em sua modalidade sem restringir o universo apenas às outras mulheres como ela?
A digressão está diretamente relacionada com questões centrais à dramaturgia de “Rosa Choque”: como a construção social da mulher se funda na linguagem, na cultura, na mídia. Enquanto a montagem com o grupo Os Conectores dá atenção à construção do feminino e a violência de gênero nas relações heterossexuais, “As Rosas no Jardim de Zula” remexe as normas da maternidade, e “Domingo” joga luz sobre a intimidade da mulher madura.
Com essas abordagens, o trabalho de Cida Falabella transpõe os limites do feminismo “classe média jovem”, vai além das pautas liberais individuais e adentra o universo simbólico de recortes imprescindíveis – porém menos visíveis – da luta pela igualdade de direitos entre os gêneros: a não romantização da figura da mãe, ou seja, a crítica à maternidade compulsória, à culpabilização da mãe e à crise da paternidade, e a atenção às questões da mulher que já viveu quatro, cinco, seis décadas, um casamento desfeito, filhos grandes e um corpo forte e belo que não se encaixa – como nenhuma vida se encaixa, pois não é peça de Lego – nos padrões das revistas e da publicidade, mas respira e aspira e anseia.
Vamos ao primeiro desses três espetáculos: “As Rosas do Jardim de Zula”. Trata-se de um projeto da atriz Talita Braga de elaboração artística de um trauma pessoal, a relação com a mãe, Rosângela, que escolheu deixar a casa da família e viver na rua. Mais do que a história em si, suficientemente matizada por emoções para um tratamento dramático, o que ganha a cena é uma visão processual da vida e da arte – duplo processo de busca de sentido. “As coisas não são, é o nosso olhar que faz as coisas se encherem de significado”, diz Talita, a certa altura.
Construir o espetáculo é efetuar essas escolhas que atribuem significados à vida daquela mulher e de sua filha, é construir o que são essas mulheres, marcadas por uma relação de maternidade que, em nossa sociedade, ainda é considerada compulsória à mulher – sua “função” no mundo. Daí a perturbação provocada por uma mãe que abandona, dentre incontáveis pais que o fazem sem estardalhaço.
Como se posicionar diante dessa experiência? Diante dos espectadores? As atrizes Talita Braga e Andréia Quaresma, dirigidas por Cida Falabella, fazem desses questionamentos seu material dramatúrgico. Expõem o processo de criação, as escolhas formais e éticas tomadas no percurso, como a opção inicial por revelar o parentesco da atriz com a personagem apenas no fim, felizmente repensada e alterada de modo que desde início os espectadores estejam conscientes das relações com o real em cena. “Boa noite. O meu nome é Talita Braga e o espetáculo que nós vamos apresentar aqui conta a história da minha mãe, Rosângela”.
Desse modo, mais do que uma história sobre uma mãe que abandona as filhas, ou sobre uma mulher que escolhe para si um destino interdito às mulheres pelas normas sociais e sofre as consequências de sua recusa a segui-las numa sociedade violentamente controladora em relação ao corpo feminino, “As Rosas do Jardim de Zula” é um trabalho sobre como abordar a vida, sobre como olhar para essa mesma sociedade, no âmbito público e no privado, e sobre como essa escolha – o modo de ver, o modo de atribuir significado às coisas, o modo de se expressar e, sobretudo, o modo de se posicionar, com ou sem julgamento sobre as decisões de uma mulher acerca de seu corpo e de sua vida – constitui uma atitude ética e política em relação a esses universos privado e público.
Há nesse tratamento de quem se recusa a julgar um gesto a favor da emancipação da mulher, de seu corpo e de seu destino, como sujeito político, autônomo, em contraposição ao sujeito relacional – a mãe, a filha, a esposa – instituído em sociedades patriarcais como a nossa. Esse não julgamento, contudo, está em tensão com o campo emocional da filha, Talita, cujo crescimento é marcado pela ausência dessa mãe –belamente simbolizada pela imagem da atriz, de chupeta, em posição fetal – e pelos sentimentos causados pelo desvio da função materna da conformidade com o padrão relacional comum em nosso meio. “Eu não quero mais tratar a minha mãe como personagem, eu não quero mais distanciar”, dirá a atriz, declarando o confronto entre as esferas do ficcional e do real, mas também – novamente – do privado e do público no espetáculo.
Há também, em curso, uma ética da forma, construída em conjunto pela diretora e pelo elenco, a partir de um duplo questionamento: como mostrar Rosângela e como mostrar Talita. Nesse sentido, a construção cênica respeita os limites do que a atriz-filha está disposta a fazer, a dizer, a expor. E concede a palavra a Rosângela em áudio e vídeo, para que, à camada de representação pela mediação da atuação das intérpretes, some-se essa imagem fantasmagórica de mediação tecnológica que toca no real de quem foi aquela mulher sem nunca contê-la ou apreendê-la.
A direção em movimento transita entre pontos de vista, afastamento e proximidade, racionalidade e afetividade, mantendo uma relação cúmplice com a plateia estabelecida por falas diretas e pelo tom confessional. Andréia e Talita encenam fragmentos da vida de Rosângela, como a entrevista concedida a elas mesmas para o projeto da peça ou a partida de casa. A presença das duas atrizes permite que se instaure um jogo épico-dramático, por vezes épico-performático, em que cada uma assume uma perspectiva em relação à história. “A Rosângela” soma-se à “mamãe”, o depoimento pessoal à representação, são faces de uma mesma “realidade”, tentativas de tocar os lados de uma vida que não cabe em um plano, é tridimensional e inapreensível em sua complexidade.
Esse jogo com o duplo projeta a identificação entre filha e mãe, tanto quando a atriz assume imagens de Rosângela, como ao vestir calça e camisa “masculinas”; quanto quando a espelha – “tem dia que eu canso”, diz Talita, enquanto Andréia/Rosângela ecoa “tem dia que eu cansava” –, colando o desconforto existencial de uma ao da outra. O desvio para a rua, então, se aproxima do desvio para o palco: dois espaços para ir além das normatizações de comportamento feminino.
Como já foi dito, a relação com o público é direta, de reconhecimento, confissão e diálogo, implicando os espectadores nas trilhas afetivas e analíticas da história compartilhada. Para isso, a linguagem é simples, e às imagens poéticas unem-se falas em que predomina a função comunicativa, que mira a relação com um público o mais amplo possível, todos e cada um, incluídos no comum do teatro. Essa é uma característica definidora da direção de Cida Falabella: um trabalho de inclusão do espectador-cidadão, indiscriminado, nas discussões críticas e na experiência sensível.
Em “Rosa Choque”, tal gesto assume contornos didáticos e conviviais para traçar caminhos da construção do feminino em nossa sociedade. O público é inicialmente separado em duas plateias, concretizando a divisão binária homem-mulher sobre a qual se baseiam as relações de poder no patriarcado. Esse binarismo hierárquico, definido pela superioridade de um dos termos do par opositivo (o masculino) sobre o outro (o feminino), contra o qual teorias como o queer se colocam, será fundamento da crítica direcionada pelos atores Cris Moreira e Guilherme Théo, do grupo Os Conectores. Não se trata de reafirmar a oposição binária, mas de reconhecê-la como estruturante, ainda, das relações sociais. E das expectativas sobre feminilidade. “A divisão homens e mulheres não foi a gente quem inventou”, dizem os atores.
A nudez da atriz e do ator deixa ver as diferenças anatômicas entre os sexos, mas são as construções linguísticas, portanto culturais, as que mais operam a exclusão. É no discurso que a misoginia primeiro age – e a língua é o reduto da desigualdade de gênero, não somente por estruturas fixas gramaticais, como o universal masculino (nos plurais e em termos como “os homens” como sinônimo do conjunto de pessoas), mas também, e principalmente, pela semântica, pela semiótica e pela pragmática. Essa sistematização teórica se converte em cena na projeção de um óvulo fecundado sobre o qual deságua a carga cultural das palavras relativas às expectativas acerca do gênero do bebê esperado e seu desenvolvimento ao longo da vida. Exemplo da sutileza da ação do discurso está no par “Não pensa em casar?”/ “Não pensa em casar!”, e em como a pergunta se opõe ao imperativo como uma afirmação velada da dependência feminina versus a autonomia masculina.
A direção de Cida Falabella opera na multiplicidade, compondo uma cena comparativa e associativa pela simultaneidade das frases e das linguagens – os corpos, as palavras, as projeções. Essa composição abraça o público num jogo de definições dicionarizadas dos termos “homem” e “mulher”, em que as luzes da plateia correspondente se acendem enquanto a outra se apaga, incluindo o corpo do espectador – e sua autopercepção – na dramaturgia, escrita por Marcos Coletta e Assis Benevenuto. Desenhado em cena, o binarismo é subvertido em detalhes significativos, como as roupas íntimas trocadas, a lembrar as limitações de tal sistema de valores e costumes. “Alguém aqui quer mudar de posição?”, convidam os atores, iniciando uma troca de lugares entre as duas plateias que resultará na mistura de homens e mulheres. Uma ação que, longe de resolver qualquer questão cênica ou social, instiga a pensar sobre os trânsitos possíveis, deslocamentos de olhar e a complexidade do problema, cuja solução está além dos atos individuais isolados, mas só poderá obtida a partir da soma destes.
Outra vez, nas direções de Cida, a fragmentação de cenas permite os giros do olhar por perspectivas multifacetadas. O registro performático dos atores instaura uma abordagem crítica em que os corpos e os sujeitos estão implicados nessa auto-observação de si e da relação com a alteridade. É sobre o tecido do real que eles atuam, forjando dobras ficcionais, como a cena da denúncia de estupro. Não à toa, a inversão tem sido um mecanismo privilegiado de ruptura dos comportamentos e valores naturalizados no âmbito das relações de gênero. Não faltam memes e vídeos em redes sociais para comprová-lo. O que perturba, nessa operação, é o desmoronamento de desigualdades incorporadas e cristalizadas sem consciência, como se fossem naturais, óbvias.
Novamente, é no sutil (e no simbólico) que começa a violência contra a mulher – e ver tratamentos costumeiramente dado às mulheres serem destinados a um homem escancara essa disparidade: as mãos no ombro, o diminutivo “mocinho/mocinha”, pequenos gestos que colocam a mulher numa posição de fragilidade. A inversão choca por evidenciar como consideramos aceitáveis abordagens do feminino que soam absurdas no masculino. Para esse efeito, é didática a reversão, que restabelece o “normal” (essa palavra que sempre remete à normatização) da hierarquia de gênero. Em complemento, a cena traz a impaciência da autoridade policial com o nervosismo da vítima, a falta de cuidado com as palavras e ações diante de um trauma, o preconceito linguístico como forma de desqualificação, a tendência à culpabilização da vítima, a desconfiança com o relato e a ameaça de prejuízos morais e financeiros à mulher, que são obstáculos dos mais comuns para a denúncia de crimes sexuais.
As transições entre as cenas e dentro delas são desenhadas pela luz e por projeções, que delineiam espaços físicos e simbólicos, interagindo com os corpos. Exemplo é a cena do depoimento de Guilherme, que persegue quadros de luz moventes projetados sobre o chão, criando uma sensação de instabilidade e ansiedade. Na sequência seguinte, a projeção de vídeo insere a personagem caricata de uma suposta psicóloga, mais assemelhada aos gurus de autoajuda do que aos profissionais sérios da psicologia. Uma presença opressora e insistente que é efeito das possibilidades de ampliação e mobilidade da imagem virtual, usada aqui também para forjar uma atmosfera transtornada, enquanto repete clichês que situam a agressão sexual no campo de um privado apolítico (“esse trauma é só seu e você deve guardá-lo na sua caixinha de traumas”) e responsabilizam a pessoa agredida (“só você pode sair desse lugar de vítima”). Numa dramaturgia que compreende as interconexões entre as diversas esferas sociais e campos simbólicos, à família, à justiça e à psicologia, somam-se a religião e a arte como território de opressão da mulher.
A música faz a conexão entre as questões problematizadas em cena e o repertório cultural dos espectadores. A denúncia do estupro invertido vem ao som de “Paz na Cama”, em que Zezé de Camargo e Luciano cantam “e se de dia a gente briga, a noite a gente se ama” – hino popular que normaliza a violência em relações amorosas. Já o feminicídio é contado ao som de “Minha Namorada”, de Vinícius de Moraes, cujos versos “você tem que me fazer um juramento/ de só ter um pensamento/ ser só minha até morrer” são trilha para a violência gerada pelo sentimento de posse. A justificativa passional que romantiza o assassinato é ironizada pelo ator que entra cantarolando enquanto carrega o corpo da atriz em um saco, como morto. “Agora eu estou morta”, repete Cris Moreira, frase-antídoto a qualquer romantização, síntese da impotência da mulher diante da violência masculina.
As projeções retornam nessa sequência multiplicando os contornos de cadáveres no chão, remetendo aos milhares de mortes de mulheres que ocorrem anualmente no país. As histórias contadas – o estupro, o feminicídio – são concretizações de casos-modelo, concentram os lugares-comuns, as características emblemáticas desses tipos de violência. Não se bastam no particular, expandem para o coletivo, seja pelas projeções múltiplas, seja pela leitura das manchetes violentas da semana, apontando para as manifestações plurais no campo do real.
Nesse movimento de ampliação das questões, como reconhecimento de seu caráter social e não somente individual, a memória do feminismo é convocada numa cena ritualística em que imagens e aforismos de algumas das principais feministas da história surgem representadas no figurino de Cris Moreira e projetadas no centro de um círculo de fogo que remete às fogueiras onde as “bruxas” eram queimadas, ao som do feminismo pop contemporâneo de Valesca Popozuda. A síntese e o ritmo fazem dessa composição uma espécie de pout-pourri de alusões rápidas, possivelmente ilustrativas para um público não familiarizado com o movimento, e trivial para os conhecedores, o que limita a potência do caráter ritual em favor de uma comunicação facilitada.
Mais uma vez, é evidente a importância do cultivo dessa relação com os espectadores para a direção e a dramaturgia, o que se manifesta também na própria presença de Guilherme Théo como a possibilidade de identificação para o público masculino. O depoimento pessoal dele entra com a força e a fragilidade da admissão de que ninguém está imune ao machismo. Em “Rosa Choque”, o combate à misoginia passa necessariamente por uma transformação do masculino – a queima das cuecas.
Antes, é o relato íntimo de Cris Moreira sobre um abuso sofrido na infância que dá corpo e imagem à gravidade de tudo que se apresentou no campo simbólico, ficcional e noticioso. Como em “As Rosas do Jardim de Zula”, esse índice do real tinge a dramaturgia de urgência e proximidade, fazendo dos espectadores mais cúmplices e implicados.
É sobre essa relação íntima com os espectadores presentes que se sustenta toda a dramaturgia de “Domingo”, espetáculo dirigido por Denise Pedron. Agora, Cida Falabella está em cena, como performer de suas próprias histórias, recebendo o público dentro de sua casa. Esse ato inicial talvez seja o que há de mais político no solo: a atenção que dá à vida privada de uma mulher de cinquenta e poucos anos. Muito da desigualdade de gênero se constrói pela qualificação/desqualificação, pelo que é considerado importante ou desimportante, digno de um romance literário ou conteúdo menor. Assim, filmes sobre guerra são levados mais a sério do que obras sobre maternidade, embora esta preceda qualquer outra ação humana. Só quando as mulheres obtêm voz para suas próprias histórias, abalam essas hierarquias. Eis o que Cida realiza.
“Ofereço minhas rugas e meu braços flácidos, meus cabelos brancos e meus pés grosseiros, meus olhos fundos e minha cicatriz, minha dor e minha motivação”, diz a mulher que surge na parte externa da casa. Mais à frente: “Quero que me respeitem por ser vivida”. No quintal e em volta da casa ou dentro da sala e na cozinha, Cida oferece seu corpo e suas histórias assim como serve a broa. A matéria do encontro é esse partilhar de si, que se apresenta ao outro como identificação e diferença, reconhecimento e descoberta. Uma confiança nos laços, nos afetos, no convívio, na escuta e na empatia como micropolítica do cotidiano e o do privado.
Um dos traços mais cruéis da desigualdade de gênero é a invisibilização de mulheres fora de um padrão restrito de aparência, peso e idade. Sobre o tema, sugiro a leitura do artigo “Corpo, Envelhecimento e Felicidade na Cultura Brasileira”, da antropóloga Mirian Goldenberg. Em “O Segundo Sexo” (1980), Simone de Beauvoir afirma que por volta dos 50 anos a mulher está em plena posse de suas forças, sente-se rica de experiências. No entanto, só lhe ensinaram a dedicar-se e ninguém reclama mais sua dedicação. Inútil, injustificada, contempla os anos sem promessa que lhe restam por viver e murmura: “Ninguém precisa de mim”.
“A Velhice” (1990), também de Simone de Beauvoir, revela um retrato cruel do envelhecimento. Ela afirma que já que o destino da mulher é ser, aos olhos do homem, um objeto erótico, ao tornar-se velha e feia, perde o lugar que lhe é destinado na sociedade, tornando-se então um monstro que suscita repulsa e até mesmo medo.
Ao entrevistar mulheres brasileiras que estão envelhecendo, constatei um abismo entre o poder objetivo que elas conquistaram e a miséria subjetiva que aparece em seus discursos. Elas conquistaram realização profissional, independência econômica, maior escolaridade e liberdade sexual, mas se mostram extremamente preocupadas com o excesso de peso, têm vergonha do corpo e medo da solidão (Goldenberg, 2011).
“Encontro aqui a história do meu corpo”, dirá Cida, e embora objete que seu corpo não é “perfeito”, “é grande, forte e me contém”. A dramaturgia de “Domingo” faz-se do reconhecimento dessa força e da fragilidade. Dá a ver um corpo que tem marcas, cicatrizes, energia, sensualidade, beleza e vigor. Compartilha sentimentos íntimos de uma mulher que já se casou e se separou, já teve filhos, já acumula histórias, vivências, sabedoria, e “quando você acha que acaba, de novo encontra o desejo”. Uma mulher que reclama para si um lugar mais justo no imaginário e na sociedade, o reconhecimento de suas conquistas e de suas qualidades, mesmo que para isso enfrente a melancolia e o medo da solidão, dos quais não está imune.
A casa, historicamente, foi reduto da mulher no auge do patriarcado, quando o espaço público lhe era interdito. Na luta pela igualdade, muitas vezes, a conquista desse espaço público significou a recusa da casa ou um acúmulo de funções extremamente desgastante para a mulher, na medida em que não se efetuou o movimento contrário de conexão do homem com a casa. “Domingo” reconcilia a mulher com esse território íntimo que é coxia, ninho, berço e horta, refúgio e repositório de memórias, expectativas e frustrações. Faz olhar para dentro, na contramão de um modo de vida capitalista urbano em que, nas grandes cidades, as pessoas passam cada vez menos tempo em casa e pouco visitam umas às outras. É uma resposta ao individualismo, à indiferença e ao ceticismo desses tempos líquidos.
Com seu trânsito entre o coloquial e o poético, o material e o simbólico, o devaneio lírico e o diálogo direto com o espectador, o solo de Cida Falabella se aproxima do ideal vanguardista de reintegração de vida e arte. Com delicadeza no trato, fazendo do espectador seu confidente, e do domingo, um estado de espírito, ela serve o café feito diante do público, agradece a presença e convida a conversar um pouco. Fazer teatro é esse encontro para mútua afetação e sensibilização, atravessado por uma estética da política e uma política da estética, a alargar nossas experiências. No caso, a experiência de ser mulher.