— por Daniel Toledo —
Crítica a partir das “Cenas Pretas”, conjunto formado por “O que não vaza é pele”, “Não conte comigo para proliferar mentiras” e “Rolezinho (nome provisório)”, de Alexandre de Sena e artistas convidados (Belo Horizonte/MG), apresentada na IV Mostra Benjamin de Oliveira.
“O Grito não é teu. Não és tu que falas;
inúmeros antepassados falam por tua boca.
Não és tu que desejas; inúmeras gerações
de descendentes desejam com o teu coração.”
Nikos Kazantzakis (1883-1957)
Às vezes, como espectador, é difícil precisar de onde vem a voz – ou mesmo o grito – a que assistimos em cena. Outras vezes, decerto, é mais fácil. Por vezes, a voz que se escuta é a do próprio artista que concebe e compartilha o trabalho, e cabe ao espectador ativar em si a capacidade de empatia, ou seja, a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir a sua dor. Em alguns casos, por outro lado, é o próprio artista que ativa, em si, a capacidade de empatia, levando ao teatro gritos e dores que o ultrapassam, mas com os quais consegue e deseja se identificar, quem sabe estendendo essa corrente àqueles que o assistem. Pois é a partir desse viés que me arrisco a comentar três trabalhos recentemente realizados pelo artista mineiro Alexandre de Sena: “O que não vaza é pele” (2013), “Não conte comigo para proliferar mentiras” (2014) e “Rolezinho (nome provisório)” (2015), apresentados recentemente como “Cenas Pretas”, na noite de encerramento da IV Mostra Benjamin de Oliveira, que homenageia com seu nome o primeiro palhaço negro do Brasil.
Fotos: Guto Muniz.
I
Na cena curta “O que não vaza é pele”, tateamos um pouco até identificar a voz – ou mesmo a perspectiva – que serve como eixo a um jogo cênico que transita entre recursos narrativos e performáticos, entremeados a breves cenas dramáticas de caráter farsesco e por vezes cômico. A narrativa, por sua vez, trata da cidade de Clarimanha, pequeno vilarejo no qual a presença de um “homem de cor” teria gerado certo rebuliço. Com o tempo, no entanto, a fábula revela seu caráter documental, remetendo a um episódio real de racismo e violência policial contra o próprio artista, Alexandre de Sena, que divide a cena com Byron O’Neill, Jésus Latáliza e MC Matéria Prima. “Vaza, negão!”, conta ter ouvido o ator, antes de ser agredido por policiais de Blumenau (SC).
Ainda que outras vozes cruzem a cena, como a de um comandante de polícia entrevistado pela televisão local ou ainda a de um suposto guarda que antecipa a “ocorrência”, é sob a perspectiva do artista – no caso, a vítima – que acompanhamos o desenrolar do trabalho. Em seu primeiro autoral, como não é raro nem difícil de se entender, Alexandre de Sena oferece ao público um tratamento artístico sobre a própria experiência de vida. Traduz ao espectador o próprio grito, provocado, como bem se entende, pela violência cotidiana que diariamente se impõe à boa parte da população negra do país.
Cabe, então, ao espectador, apropriar-se daquela dor ou não. Recorrer, quem sabe, às próprias memórias e violências sofridas, ou, se for o caso, colocar-se no lugar dos milhares de jovens negros diariamente assustados, agredidos, machucados e mortos pela polícia e a sociedade brasileira.
II
“Não conte comigo para proliferar mentiras” nos conduz a uma narrativa anônima que novamente apresenta ao público o opressivo cotidiano enfrentado pela população negra. Dessa vez, o contexto remete de uma favela urbana onde tiros de bala se confundem a estouros de balões de criança. Apresentada a situação inicial e dois personagens que a habitam, a performance é embalada pela canção “O homem na estrada”, dos Racionais MCs, simultânea à construção de um cenário marcada pelo “estética da ginga” que caracteriza a arquitetura e a urbanidade das favelas brasileiras.
Enquanto a letra da música nos leva à história de um homem explicitamente negro que apresenta uma vida marcada por violação de direitos humanos, criminalidade e violência policial, a performance a que assistimos, conduzida pelos atores Will Soares e Igor Leal, surpreende ao mesclar elementos de um universo tipicamente masculino, tais quais a cerveja e a blusa de futebol, e outros, associados ao hiperfeminino traduzido pela cultura drag, reunindo peruca, maquiagem e um belo vestido de festa.
Transitando, ao longo da cena, entre imagens que remetem tanto ao rapaz de periferia quanto à travesti que, ante semelhante marginalidade e privação de direitos, habita as ruas e cidades brasileiras, o ator e performer Will Soares nos convida a ressignificar a letra da música e ampliar a gama de vozes representadas por ela, fazendo-nos pensar, quem sabe, que aquele suposto homem, encontrado morto, na estrada, poderia muito bem ser uma das centenas de gays, travestis e – por que não? – mulheres vitimados por um país lamentavelmente lidera muitas estatísticas de violência motivada por ódio de gênero.
III
Claramente coletivo é o grito trazido pela terceira cena do conjunto, intitulada “Rolezinho (nome provisório)” e realizada a partir de uma chamada aberta do diretor a outros artistas, ativistas e cidadãos negros da cidade. Dessa vez, no entanto, o caráter performativo, também presente nos trabalhos anteriores, ganha ainda mais importância, deixando pouco espaço para algum tipo de representação ou espetacularização. Tal caráter, aliás, fica claro logo de início, quando uma adolescente com mochila nas costas dirige-se da plateia até o palco, veste caneleiras, pendura no pescoço algumas guias de proteção e pede o microfone.
Sem ares ou gestos de atriz consagrada, e tendo na própria presença o principal força cênica, ela nos lê o texto “A criada”, obra do jovem ator, diretor e dramaturgo Jé Oliveira, fundador do Coletivo Negro, que há cinco anos atua na capital paulista. No melhor estilo “papo reto”, o dramaturgo nos apresenta uma foz feminina, que poderia remeter a uma pessoa ou ainda a uma voz coletiva – quem sabe a voz de um povo. Com poesia e contundência, essa voz -feminina – declara a ruptura com um longo ciclo de invisibilidade, silenciamento e subordinação, seja dentro ou fora dos palcos do país.
“Eu repito para quem ainda não viu:
eu estou aqui,
há 500 anos eu estou aqui.
Não serei mais criada.
Eu também quero criar,
nem que seja desejos.
Estou grávida de desejos e sentidos.”
Enquanto a performer – Laura de Sena – lê o texto, outros colaboradores passam, gradativamente, a ocupar o palco do teatro, chamando atenção a um espaço ainda tão “pálido” e pouco descolonizado – a exemplo de tantos outros. Escutamos, então, a pouco ouvida voz da mulher negra e jovem, ali performada por uma adolescente que a muitos deve fazer lembrar as (e os) estudantes secundaristas que já há algum tempo têm descoberto a própria cidadania ao ocupar escolas públicas em diferentes cidades do país. À medida em que ela ganha novas companhias, também novos significados são acrescentados ao texto, remetendo tanto a cada um daqueles que, de fato, estão presentes no palco, quanto às silenciadas ancestralidades que trazemos, todos, conosco.
Findo o texto, a comunidade formada diante de nós se reconhece, e um novo grito irrompe o palco. Em vez da dor e da revolta que de algum modo marcavam as cenas anteriores, o que se tem, agora, parece um grito de libertação e luta. Um grito que ecoa a força de gerações de negras e negros que, ao longo dos últimos 500 anos, vêm, cada um ao seu modo, trilhando caminhos rumo à superação de processos históricos de silenciamento e invisibilização.
Ecoemos.